01 março 2008

Exaustos os sentidos

Da janela do meu quarto, que se resume a pouco mais do que uma janela, em torno da qual tudo vive e tudo nasce, os sonhos, as ilusões, os anseios mesmo, da janela do meu quarto, dizia eu, que quase nem quarto tenho e raramente abro a janela; da janela do meu quarto, queria eu dizer, que hoje nem sei o que quero e nem sequer o que digo, da janela do meu quarto há o local distante que se vê e que eu sinto quando não vejo, que se chama o mar.
E se da janela do meu quarto eu visse, como afinal se pode ver, o mar e mais o céu, e o que por ele se alcança, eu não teria esta noite que sonhar-te aqui, terra longínqua, trancado por dentro do quarto e de mim, de janelas cerradas e luz apagada, sem outra companhia que a minha, sem outra invenção do que a tua.
Mas da janela de mim que sou eu, vejo e sinto, diria mesmo que pressinto mais que mar e céu, ou a terra que me sobeja, todas as embarcações passí­veis de navegar, botes e galeras, escunas e galeões, lenhos toscos e naus aparelhadas, portentosas fragatas mesmo, vapores ufanos e pirogas primitivas e sinto, alagado já na ossada, nas entranhas do ser, o furor marítimo a afogar-me e a força de uma corrente a sugar-me.
Na aflição marítima que me arrebata, digo e grito e sobressalto-me, berra-se na amurada, corre-se pelo convés, é a hora e vem a manhã e com ela a brisa e a maré do instante de partir!
Alce-se o pano, rodem-se cabrestos e solte-se âncora, orce-se a estibordo! Lá longe, na névoa do horizonte, há a certeza da tua existência. Aqui, ao frio gélido da manhã, há a certeza de navegar!
Que os deuses nos acompanhem e destino e viagem se encontrem!
Da janela do meu quarto, eu vejo um barco a sair e uma infinita tristeza de mim, desfaz-se enfim em viagem.
Longe, envolto no xaile do medo, fica o mundo do adeus, gente que se abeira deste molhe nas horas sentidas do entardecer, e que mira, de olhos nocturnos o longínquo infinito, como se o não visse ou ele fosse apenas imóvel ponto ou até coisa nenhuma, o vazio no olhar e como nele me represento, a ausência de tudo e a presença do nada.
É a geração dos que foram, a alma dos que poderiam ter ido. A saudade é neles o repetido desejo de nunca ter nascido. No tédio, no descolorido de vida, tudo o que a vista alcança, tudo mesmo o que lhes chega através de todos os sentidos, não lhes parece real, mas sonhado, não lhes parece ganho, mas dado, não lhes parece merecido, mas roubado.
Só há mar incógnito na terra monótona, nas horas sentidas do poente, tudo o mais este molhe é o imóvel ponto e o longe a desejar-se.
Eis o mundo que eu entendo menos com a cabeça, que tudo compreende, mas com o coração que tudo sente, o mundo que pressinto e o que adivinho. É assim que antecipo o futuro no presente, imaginando-o como o desejaria e confortando-me, antecipado, se ele vier adverso.
Deste lugar diviso-o ao horizonte móvel e por isso inatingível e nele o fim dos dias, em cada tarde: é essa a tristeza do ocidente, o ser poente.
Um vento desconfortável faz-me recolher. Talvez amanhã eu acorde tarde e me poupe assim ao regresso da luz.
Nessa noite morreu-se no mar.
Na sua frágil traineira, sugada pelo fatal remoinho, enlouquecido pelo volteio das estrepitosas ondas, lançava o náufrago ridículos sinais.
Era ali, a praia à vista e sem que à praia chegasse, que tudo lhe terminaria. Um aceno na ânsia de ser visto e viam-no, agora que chegava, o momento agónico do seu morrer, um aceno lhe bastaria para finar-se em companhia.
Na sua frágil traineira e sem à praia chegar, teimando ridículo, o náufrago morria no mar sonhando-se no céu, uma agonia em azul, o marulhar como o último dos sons a rebentar-lhe primeiro os ouvidos, a afogar-lhe por fim a possibilidade de viver. Houvesse assim, em cada fim de tudo, a grandeza medíocre de um aceno, uma mão estendida, uma tranquila praia onde tudo pudesse terminar!
Ei-lo, morto, entre redes recolhidos, abraçado de sargaços, um choro miúdo como se uma morrinha de dor a encomendar a sua alma.
Adormecidos, exaustos, os sentidos, uma náusea ébria toldara-lhe o entendimento. Talvez tivesse caído em qualquer momento, de que não se lembra, partidos os ossos, amassados os músculos, talvez tivesse sido a própria vida marítima a atropelá-lo, no seu passar galopante, sem o ver, o vaivém de rebocadores, o ronronar de lanchas, espreguiçarem-se os botes e outras minudências flutuantes.
Uma dor calada afunda-se-lhe nos olhos, um sabor acre e salino agonia-lhe, na boca. Em redor, um mundo alagado de tanto chover faz-se então notar, folhas gotejantes tilintam-lhe aos ouvidos.
Soubesse ele como tudo aconteceu, depois do momento em que, estrepitoso, o travejamento da destroçada embarcação, estalando-se, se abateu em cima do seu massacrado corpo. Mas não! A ausência de recordação protege-lhe a cabeça por dentro, partida que está por fora.
Tudo começou com uma ondulação suave, puxada a vento de norte. Rumavam velozes, o pano alçado, assobiando de contentamento, como se tivessem destino certo.
Agora está morto e só. Da tripulação do «Évora Monte» apenas o seu corpo ficou, para que em terra se soubesse como foi.