30 julho 2008

Uma carta de amor

Meu filho, escreveu ela, a mãe ausente, há momentos em que damos conta do que fizemos ao termos dado vida ao que de nós nasceu. Talvez hoje, por estar um dia feio e breve e anoitecer mais uma vez sem que eu saiba quantas mais, por chegar a insónia e o telefone não tocar. Talvez por ter chuviscado. Chega-se a um tempo em que tudo é indiferente à tristeza.
Houve tempos em que lia e enganava o estar sozinha tendo os livros por companhia. Foram amarecelendo, a estante cada vez mais inacessível, as letras mais sumidas aos olhos, como se deles fugissem.
Houve tempos em que esperei que qualquer estranho me animasse a alma mirando-me o corpo. Depois fui envelhecendo.
Dentro de dois dias será domingo. Vinhas por sistema ao domingo, primeiro só, quantas vezes acompanhado mas só, quantas outras sem ninguém para que eu não percebesse que sozinho estavas com mais uma nova companhia.
Meu filho, faz hoje anos que primeira vez te levámos à escola, nessa altura ainda havia o teu pai.
Ficou e ainda hoje se não apagou a lembrança do teu olhar, a censura, o medo, o anseio. Depois alguém te recolheu e o mundo tomou conta de ti. Nesse dia deixaste de nos pertencer. Lembrei-me isto e fui a uma gaveta onde ficaram bugigangas que são o que sobeja da tua presença e está lá num caderno de folhas brancas - terás sido ensinado pela professora, que interessa - o primeiro de tantos outros desenhos, o de uma flor e por baixo, numas maiúsculas incertas, disformes, vincadas aqui e quase imperceptíveis ali, os traços de letras que todas juntas foram a palavra «a-m-o-r».
Nesse dia, chegada a noite, o teu pai indiferente do outro lado da cama como se do outro lado do mundo estivesse, perguntava-me sonâmbulo: que se passa para estares agora a chorar? Apaixonei-me, disse-lhe. Disparate, respondeu, sem um esgar de ciúme sequer.