26 setembro 2008

De todos indiferentes

Estava sentado na cama, as pernas recolhidas, sentindo áspero dos calcanhares como uma lixa na maciez da pele, os joelhos masssacrados de doerem, uma ligeira caimbra pela incómoda da posição, um ligeiro torpor de sono, o cansaço no colo na form de um livro de leitura por acabar.
No tecto uma luz hesitante mal projectava a sombra da lâmpada que a gerava, a luz da mesinha de cabeceira definitivamente avariada.
Vinda da contígua retrete um hálito a desinfectante. Não havia lugar recôndito onde se respirasse outra coisa para além da sordidez que habitava aquele local, empestando-lhe as paredes.
Foi então que a vi, hesitante, como se tivesse olhos para me ter visto, um dorso luzidio a assinalar-lhe a presença, ensaiando uma corrida para se proteger do perigo circundante.
Afinal eu mais não era do que um viajante de ocasião, surpreendido pela noite e pela chuva, as meias e cuecas lavadas no mesmo lavatório onde um gotejar audível marcava uma canalização moída pelo uso e seus despejos, o sarro junto ao ralo uma limpeza descuidada, rotineira entre mudas sucessivas de lençóis.
Poderia tê-la esmagado, fazendo estalar sob a sola do meu sapato aquela rígida carapaça, que era o elmo que a protegia do mundo, o modo que encontrara de se defender dos humanos. Não sei sequer porque não o fiz. Hoje esconde-se debaixo da cama, quando não foje pelos canos entupidos e pestiletos, as tacteantes patinhas, de todos indiferente e da cidade alheada.

25 setembro 2008

A dispersa memória

Cruzadas as mãos, sobre o colo apoiadas, os olhos firmados no indeterminado horizonte, o pensamento ausente, era ela, a improbabilidade de si na exactidão do momento.
Tinhamo-nos visto anos antes, muitos anos idos, resquícios tudo isso agora de uma dispersa memória, lembrança esburacada feita de ausências, de desejos por realizar, fantasias de uma outra forma de ter vivido. Regressei, ao vê-la, ao tempo dos quartos alugados, os carinhos de ocasião.
Inseguro quanto a ter-me reconhecido, sentei-me, duas filas atrás, a mole humana como paliçada protectora da minha vergonha, esse modo decente de serem os remorsos um simples rubor de timidez. No fundo eu fugia ao que tinha sido.
Notei-lhe a saia poída, o casaco sobejando ao corpo emagrecido, os lábios mirrados pela desdentação. Ao vestígio de um brinco rendilhado sucedia agora, molemente pendente, um lóbulo de orelha disforme, sozinha.
Nesse tempo eu escrevia horas infinitas sob uma luz hesitante, uma nesga de janela sobre uma parede vazia como firmamento, as estrelas quando sonhadas. Regressava a casa protegido pelo seu sono pesado, a arritmia de um ressonar embalador, uma tábua junto ao aparador a chiar, lágrimas pela minúscula casinha de jantar.
Uma vez por mês fazíamos contas da minha hospedagem. Olhava-me então com a censura do olhar de quem precisa de ceder o corpo por necessidade, ao franquear a porta de sua casa a um qualquer outro que podia nem ser eu.
Um dia de descuido parti-lhe desengonçada jarra que a ausência de flores condenava ao ridículo. Ainda hoje recordo o estridente dos cacos, como uma gargalhada pelo chão. «Desculpe-me», disse-lhe tartamudeando o meu embaraço. «Eu pago». Devolveu-me o infinito de uns olhos já sem cor como desprezo.
Vi-a hoje. Vivia agora à mercê do acaso. Ao último hóspede sucedeu fecharem-lhe a casa. Cruzámo-nos na saída. Indiferente a todos, estendeu-me a mão como se a um qualquer outro, não num cumprimento, mas a pedir. Paguei-lhe, generosamente, a jarra, as gargalhadas, o corpo e a necessidade, a alma e os remorsos, o pensamento ausente.

20 setembro 2008

A paragem na Avenida

Passava, aninhada no transporte público, tendo no casario em frente uma janela como horizonte, o haver nela luz, companhia. A seu lado os prisioneiros da monotonia seguiam, enlatados, para os trabalhos enfadonhos a que chamavam empregos, vindos de antros de aborrecimento a que chamavam lares. Indiferentes, sem saberem, amuados, o que é o amor feito de olhos ansiosos.
Naquela rua, mudava de transporte, seguindo em linha recta, em outra lata motorizada igual, uma das que se chamam autocarro. No além da janela, mesmo havendo luz, podia estar ninguém. A esperança de uma presença era a força que lhe fazia bater o magnífico e carinhoso coração.
Num casquinar de estridência um horrendo «olhem, olhem» acordou-os a todos: «o homem está em pelota!», grunhiu-se do banco dos palermas, à ré.
À janela, pois, imagine-se, na cidade de Lisboa, a paragem em frente não detinha o exibicionismo imparável. «Um vaidoso», diria um, num ruminar anónimo, a mão filada na balaustrada, para evitar os sacões daquele rodinhas da senhora Carris, «um nojo!», vociferava outra, o repúdio nascido das ânsias por não ter visto.

01 setembro 2008

Não se brinca com facas

Próximo, o momento mais perigoso do dia, a hora exacta de amanhecer; a noite pode roubar-nos tudo, sub-reptícia, emboscada, surpreendendo-nos no sono, hipnotizando-nos no sonho, a noite pode transmutar-nos e acordar-se disforme, revoltoso, olhar-se para a insuportabilidade de todas as coisas com as quais se viveu em soporífera indiferença
Sentei-me, esgotado da vigília. Olhei longamente a rua comprida, o olhar distante, um automóvel rumo ao infinito horizonte. Voltei a sentar-me, a cama meticulosamente feita e em frente dela a pequena secretária arrumada até ao pormenor, totalmente inútil, o tampo coberto de livros, papéis, bugigangas, sei lá
As luzes de cena vão enfraquecendo, um candeeiro apenas para vencer a escuridão, a luz quebrada, o pesado reposteiro
Há quantas horas estou aqui? Que noite é esta, estrangeira, que me cerca ainda, pegajosa noite, a impossível noite, a de que vejo a silhueta do seu fim, a progressiva madrugada? De quantos dias são feitas tantas horas, e quantas horas faltam para estes dias, estou tão cansado dos olhos e de tanto ver
E a dor, a persistente dor, a mão aberta em leque sobre o dorso, tacteio, a zona dos rins, uma faca aguda cravada aqui, um estilete, dói-me, espreguiço-me, estou sem um sapato, desequilibrado, coxo e uma perna dormente descalço-me, não andes descalço que te constipas, tantas vezes me constipei em garoto, não, agora já não tenho anginas, cortaram-me as amígdalas, há quantos anos que sou grande, mas agora é só esta dor, há quantas horas já é noite e quanto até que chegue o fim da noite e quanto falta para todos os dias, amanhã tens de acordar cedo, andas a dar cabo de ti meu rapaz, eu sei
[continua aqui]