11 janeiro 2009

O interstício de claridade


em todas as peregrinações
e em todas as viagens
o momento tardio
em que sem sol
ou interstício já de claridade,
sem um instante de grandiloquência
ou uma eternidade de aborrecimento
um homem,
de tantos homens semelhante
e, afinal, na sua individualidade, único,
sentado na mala do seu passado,
chega ao cais de um qualquer destino.
Podia ser
precisamente a esta hora,
em que a noite cresce,
a chegada de navio a um qualquer porto de águas sujas
infestado de calor porco, moscas vorazes e mulheres a desbarato
um porto de um cais de uma cidade,
de um não importa qual país;
suado
escuso como noctívago contrabandista
bocejante como um turno de domingo
esse homem corporiza em si
a ânsia de partir.
Para trás dele,
na amurada do adeus adeus,
ficaram todos os que nunca chegarão,
o lenço num aceno ao abandono,
os nautas da improvável viagem.
Esse é, na exactidão do firmamento,
o momento tardio,
quase o instante derradeiro
em que um homem chega
a destino sujo vindo de uma vida vil.
Esse é o começo da sua partida infinda,
nómada sentimental.
Ante os seus olhos,
emigrante e exilado,
viajante e andarilho,
momentaneamente escuso,
semi-tapado pela escotilha do convés
um relógio marca impossíveis horas
de um tempo inescapável.
E, no entanto,
paradoxo da Razão,
funciona,
na lógica de toda a sua mecânica,
certa, exacta, de uma rigorosa e calibrada
inutilidade,
máquina de contar o intervalo e mostrar a distância
concerto de rodas dentadas, ponteiros,
e tantos outros mquinismos,
a síntese da loucura humana,
de capturar o Futuro, perseguindo-lhe a fuga pelo caminho solar.
«Que horas são», pergunta o exaurido passageiro.
«Dez da noite», respondem-lhe do anonimato que se acotovela
figurantes de uma antecipada insónia
e suas formalidades aduaneiras,
o zero humano de todos os sequiosos de terra
mais os saturados de mar.
Nessa noite, a lua iniciava um novo ciclo,
a caminho do seu apogeu de opulência,
erguendo-se
orgulhosa de esplendor,
nos céus incendiados daquele antro de festim.
A grande resignação abateu-se, enfim,
mãe e amiga, sobre todos eles,
apiedando-se do seu medo de existirem.
Uma hora depois,
solto o portaló
e terminada a amarração,
formava-se a longa fila
da manada de emigrantes e outros sem destino certo.
Sob uma luz doentia,
a indiferença vigilante
mirava-os de soslaio,
o carimbo suspenso,
uma vida em hesitação.