24 maio 2010

O ar irrespirável

Sábado de tarde.

Sala após sala, hoje todas vazias.

Fechadas umas, entreabertas outras, as portas dos gabinetes alinhavam-se ao longo do corredor, o dele o último, à esquerda, já houve tempos em que «o senhor doutor, lamento, mas é raro estar aqui, terá de fazer a fineza de marcar». Agora era como se não tivesse mais para onde ir, o estar equivalente a ser encontrável, a oferecer-se, estando, a que o encontrassem.

O Verão chegara antes do tempo, na forma de um fim-de-semana sem gente e de um sol a amarelecer a vida, encarquilhando-lhe os restos, assim se não fechassem nas gelosias as tabuinhas.

Nunca se sabe como se chega a ser o que se é.

Primeiro fora a lenta agonia da profissão, o mal que lhe fazia sofrê-la de dia e odiá-la de noite. Agora, como se tudo não tivesse uma história a intervalar o tempo, a tê-lo poupado ao longo e dorido acto de vivê-la, estava assim, inerte, indiferente de sentimentos, vazio de ideias.

Ficaram-lhe, nas estantes, preciosidades antigas, na forma de livros que tinham caído em desuso, a encadernação como réstia de uma importância agora ilusória. Sentado onde estava, já não conseguia ler-lhes as lombadas, adivinhando-os pelo lugar de onde há tanto tempo não saíam. Nesta tarde, neste sábado de agonia abafada, olhava-os com o gesto contido, o espírito parado, longe dali.

E, no entanto, durante tantos anos, estes livros bafientos agora, mas que já tinham sido novos e úteis e até como colegas prestáveis, tinham sido companhia, enxada, por vezes o desespero. Nalguns anotara mesmo, com caligrafia miúda, apontamentos, tantos em meias folhas de bloco, momentos de interpretação, o exteriorizar de uma dúvida, a extensão de um comentário.

Lembrou então o facto, o que esta história conta.

Talvez tivesse sido também num sábado, ou num domingo de tarde, quando ainda é pior estar-se no escritório fechado, amputada pela clausura a vida e deformado pelo isolamento o ser.

Parecia-lhe hoje tudo tão longínquo que dificilmente conseguia reter na consciência actual ou fixar na memória passada uma data para o que acontecera. Tinham-lhe ficado, porém, impressos no sentir magoado os pormenores do que sucedera, mesmo os mais insignificantes.

Esquecera-se de todo que, na segunda-feira, lhe acabaria, impreterível, o prazo de um dos poucos processos que ainda tinha; pior, o prazo para fazer o que adiara toda a semana, sem vontade, na mira de um halo de resignação que o levasse a sujeitar-se a ter de o fazer.

À força de empurrar para o fundo da memória aquela obrigação insuportável, o espírito, apiedado, fizera com que se esquecesse.

Foi pela hora de almoço que veio ao consciente de si a lembrança.

Por essa altura ainda teria família, almoçava-se muita vez perto de casa, num restaurante que se tornou impossível.

Contrariado, sentara-se, sentindo a agonia do papel em branco, a desesperante falta de vontade.

Começara com o sacramental «Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito do Tribunal Judicial de» para logo se afligir com o saber a que tribunal se deveria dirigir, entre o labirinto de regras de competências e de conflitos territoriais e o receio de que um engano, com o prazo a acabar, lhe pudesse ser fatal.

Continuou então, linha a linha, o pensamento a escorrer-lhe para o papel, o desconforto de imaginar que já nem tinha quem lhe dactilografasse o que escrevesse.

Foi então que lhe pareceu que alguém batera à porta.

Primeiro, toques tímidos, hesitantes, depois, porque a campainha não funcionava sempre naquele escritório em que, lentamente, tudo deixaria definitivamente de funcionar, um bater mais claro, mais nítido, como se um sou eu familiar, a aflição de um abre-me.

Desperto para um exterior de onde há tanto tempo quase nem o correio lhe chegava, deu consigo, os passos abafados pelo velho tapete, corredor afora, num «já vou, por favor espere», em que só a vergonha escondia a súplica murmurada do «não se vá» e a alegria gritada do «é para mim!».

Era de facto.

Morava na mesma rua, do outro lado do passeio, num andar de um prédio gémeo, dos que viram ainda passar carroças de lavadeiras e amoladores galegos, a roda de afiar e os cortadores de gaforinas ao domicílio, corte curta a franjinha que é para mais durar.

Sabia-o advogado, desde há muitos anos, vira-o no ir e vir afadigado dos tempos em que tinha pressa.

Assistira à sucessão dos seus automóveis, conhecia-lhe, como se fosse o seu, o guarda-roupa, a sucessão primeiro de roupa nova em cada estação, o estabilizar, enfim, no velho sobretudo, os sapatos amassados nos pés timoratos do caminhar miúdo.

Vizinha, partilhara o prédio e suas rendas com uma irmã, solteira como ela, anos a fio e com ele uns quantos outros espalhados, nem ao menos em propriedade horizontal, por essa Lisboa em ruínas, na Madragoa um, o mais antigo, em que uma mercearia caduca era o que sobejava de arrendável, no Alto do Pina outro, cedido, sem contrato sequer, a uma garagem de recolhas que outrora ainda fora de reparações até que o mecânico se reformara e o filho do dono se resolvera a arrendar o espaço como armazém de estacionamento.

Era a vida imobiliária que a trazia ali.

Lentamente, ano após ano, a doença da irmã, primeiro atirando-a para o desatino doméstico das atitudes incompreensíveis e depois para um lar, nas Avenidas Novas, onde foi encontrada sem sentidos num dia anónimo em que chovia, haviam feito dela o último ramo subsistente da família e a única herdeira da fortuna por dividir; mas uma fortuna em ruínas, prédios entaipados e esvaziados de uso, alguns só em paredes, como muros altos de matagais imensos e coito de vadios e indigentes sem casa e outros animais rastejantes.

Tratava-se de conseguir, por entre os labirintos da burocracia, evitando os alçapões do Direito, tornar aquele museu paleolítico, verdadeira pedreira urbana que em tempos tinha sido pequenos palacetes e geminadas moradias, algo de rentável, que vendido ao menos ao desbarato desse dinheiro para uma vida decente que a tirasse daquele envergonhado remedeio, recordações antigas como única companhia.

Negócio promissor, encontrara enfim, nos últimos dias, a solução milagrosa que a penúria lhe não permitia, na forma de um atrevido promotor que de tudo faria habitação de luxo e condomínio fechado para gente ansiosa de viver bem e temerosa de viver em insegurança.

«E em que posso ser-lhe útil», arriscou, uma bruxuleante luz a acender-se-lhe nos olhos, o velho advogado, vendo surgir-lhe ali, enfim, para os últimos anos da vida, um trabalho capaz que o devolvesse às lides, ao menos ocupação do tempo que o fizesse sentir-se um homem útil, rendimento valioso que lhe permitisse outra vez um viver desafogado.

Porque, tal como a criatura que aquele sábado de tarde lhe trouxera, como se o piedoso destino tivesse girado em seu favor a roda da fortuna, também ele era um emparedado pelos escombros do que amealhara.

Soterrado em livros que eram a arqueologia de um Direito que o tempo tornara caduco, arquivo abarrotado de processos que haviam passado de vez para o rol dos casos findos, a memória esfrangalhada de histórias de gente que já nem vivia para as poder contar.

Todos os casos em que se envolvera, os processos em que litigara, os acordos que conseguira firmar, o mais insuportável cliente e o mais rebaixado colega, a galeria dos seus horrores parecia ter-se convocado para aquela saleta poeirenta, que a luz do sol tentava abocanhar com hálito quente e devorador.

«Desculpe-me, não sei se serei oportuna, ainda por cima ao fim de semana», rápida a voz, prático o espírito, «obrigado, mas não vale a pena sentar-me, é rápido».

E de facto era: parte do negócio envolvia a venda do prédio onde estava aquele escritório, a demolição, o despejo certo, o ter de negociar com os novos senhorios, gente difícil, «desculpe-me mas compreende não é? Não temos outra alternativa e na sua idade também trabalho já não terá muito».

O estertor do silêncio deu o sinal da compreensão. A vida encarregara-se de resolver.

Saiu, tímida, hesitante, uma possível última frase por dizer, o advogado gentil a acompanhá-la à porta, mas enfim recomposta, a figura, a pose, a postura, adejando como liberta e de novo retornada aos tempos áureos, talvez mais nova não sem um «que calor está aqui, estes reposteiros não lhe tornam o ar irrespirável?».

No dia seguinte encontraram-no enforcado, a língua ridícula de grossa, o corpo a defecar-se, imundo e triste.

08 maio 2010

A interminável história de viver

Eram
pouco mais do que sete horas
da manhã.
Talvez a rua não seja hoje,
ao entardecer-me o pensamento,
na sua indecisa forma
e evanescente aparência,
mais do que uma sonolência
ou um estremunhar
a boca azeda os olhos semicerrando-se.

Mas há a vida
e a força de viver
e com isso o sol
e o desejo de lua
gananciosa vontade
ferrada nas entranhas
voraz de carência e da ausência saudosa.

Talvez a rua e nela a presença
nocturna e noctívaga
intervalo que é de vidas cansadas
seja a forma
o modo
e afinal o meio
de vividas estarem todas as vidas
e surgir, nítida, exacta e colorida, a possibilidade enfim de viver.

01 maio 2010

O marceneiro místico

Sentado num canto do armazém, um homem olha, uma vez mais, o espaço vazio à sua frente. O que fora uma serração, fábrica de móveis para exportação, era agora um hangar, lugar de arrumação de madeiras emparelhadas e nada mais.
A falência tinha encerrado a produção, os credores mais astutos tinham conseguido, pela calada da noite, levantar as máquinas, pagando-se assim, conluiados com os administradores que, entretanto, andavam por parte incerta.
Restava agora o material que, anos a fio, dera trabalho a tanto operário, prodígios em carpintaria que a arte de tornear havia feito ornamento de pobre e vaidade de rico, prenda para primeiro casamento ou remodelação de fastidiosa decoração de uma vida a precisar de novidade.
Agora, tudo se resumia à sua pessoa e às pilhas de barrotes de que ficara, nomeado pelo tribunal, fiel depositário.
Não fora fácil adaptar-se ao seu novo estatuto, à condição legal em que fora investido, sem pompa nem circunstância, por um oficial de diligências apressado no «assine aqui».
Filho e neto de operário, educado na honradez do sacrifício, instruído na dureza do combate pelo pão e pela paz, faltara-lhe a coragem de anunciar-se em casa como despedido, como se aquela ociosidade forçada fosse um anátema que o desqualificasse como homem e o insultasse como cidadão, como se abandonasse agora, com o seu novo estatuto, as fileiras do proletariado, razão do seu orgulho e da existência do seu ser.
Ainda por cima, aquela nomeação vinda do tribunal tinha, nos recônditos clandestinos da sua memória, um sabor estranho a colaboracionismo, que o tornava um amarelo traidor à causa colectiva, à luta dos trabalhadores seus camaradas, cerrados ainda em fileiras, nos piquetes de greve, que nunca furara uma sequer e pelos quais sofrera os curros do Aljube, sua condecoração, lenço vermelho ao pescoço, apertando-lho como se a lembrar o juramento fraterno do juntos venceremos.
Por causa disso, dessa incapacidade de confessar a sua miséria de desempregado, saía todos os dias de casa, a mala lancheira na mão, o eléctrico de Alcântara apanhado à hora certa, vindo a pé, calçada abaixo até à primeira paragem, pelas sete da manhã. Sentado na mesa da sua exígua cozinha, cabisbaixo como se habituara a ser, arcando em si a infelicidade explorada de toda a sua classe, sorvia as sopas de café como mata-bicho, o rádio baixinho para não acordar os vizinhos, as primeiras notícias da manhã a revoltá-lo o suficiente para o resto do dia.
Fora assim, este ritual matutino, toda a sua vida activa e era agora o que preenchia, com o sempre igual da rotina, o vazio da ociosidade.
A diferença só acontecia quando, chegado ao seu posto de trabalho, já o fato-macaco envergado, se cruzava com a sua solidão. Logo ao franquear do portão, já não estava, como anos a fio estivera, o guarda do turno da noite, olhos encovados à espera de ser rendido, um hálito notável a bagaço, a sua companhia nocturna, o Alves, que deambulava agora, vadio entre os bancos de Belém e a varanda da sua casa, prisioneiro de olhar distante, um cigarro apagado nos lábios, alças de camisola interior todo o ano, o peito encostado às costas da cadeira, sentado ao revés, as mãos sob o queixo, a imobilidade perpétua dos que já cá não estão se não na contemplação angustiosa do que ainda resta.
No armazém do nada, resto da fábrica de coisa nenhuma, passaria meses seguidos, sem outra missão que não fosse a de guardar, sem nada já que se guardasse.
Mas foi num dia,um dia que parecia ser, como tantos outros seus antecedentes, igual e como eles indiferente, que tudo aconteceu: uma ideia, vaga e incómoda, visitou-o, como se uma aparição etérea o tivesse possuído: olhava para o tecto do enorme espaço que era o hangar, já escurecera, o dia invernoso, daqueles em que anoitece mais cedo e eis que uma luz, vinda do céu, o atingiu, talvez o refulgir de uma estrela inesperada.
Tinha-se deixado ficar para além da hora, ébrio de pensamentos e de estranhos presságios.
Em redor, o trânsito começara já a abrandar, e com isso a noite ganhara presença, inundando-lhe o interior e restituindo-lhe uma estranha paz que nunca sentira.
Um desejo de ficar tomou então conta de si. Não tendo ninguém em casa, liberto de ter de dar uma explicação para a sua demora, o seu lugar era ali: encostado a uma parede, os pés estirados, adormeceu profundamente, cansado como nos velhos tempos de corpo sovado pela labuta diária, na hipnose de olhar o céu.
Sonhou, ele que nunca mais sonhara desde miúdo, para quem a cama era um lugar de alienação e de perda de tempo, um intervalo necessário quando esteve doente e raramente estava doente, o dormir um luxo de que os trabalhadores, condenados ao madrugar, estavam roubados pelos exploradores do seu trabalho.
Conduzido pela fantasia, sem que a sua vontade domesticada pudesse interferir, levantou-se, como um real sonâmbulo e, pela primeira vez, aquele hangar vazio, aquelas madeiras empilhadas ganharam um significado e um sentido e a sua pessoa uma dimensão outra, que nunca julgara possível e para a qual uma irresistível força o empurrava, como se levitando aquém dos limites do real.
Começou nesse dia a construção do que viria a ser uma das mais magníficas catedrais que o espírito humano havia concebido, lugar de culto de uma religião sem deuses, a sagração do espírito e a sua hossana ao mundo.
Dia após dia, surgiram, edificadas, as paredes altaneiras, o edifício escorado sob o travejamento que lhe sustentava o equilíbrio.
Primeiro a nave central, traçada a fio no chão, longilínea a todo o comprimento do espaço disponível, medida a passo até ao cruzeiro onde lhe surgia, atravessando-a, o transepto, essa forma de o edifício ser ele próprio o símbolo da persignação.
Esforço de gigante, a sua idade a pesar-lhe como as madeiras às costas, alçava-se a pulso nos andaimes vendo-a de cima, na vertigem da sua caminhada ascendente, a arquitrave que lhe daria o remate das colunas do oriente.
Alquebrado, colado, como se cozido às paredes do hangar de onde tudo surgia e se erguia, pois mal lhe restava caminho por onde andar, movimentando-se como réptil sob a imensidão da sua obra, acocorando-se e ajoelhando-se, rojando-se mesmo, humilde, aviltado o ser, havia um homem que definhava para que a obra nascesse.
Foi na noite escusa do construir secreto da abóbada, em que o trabalho não pára por não poder parar, os arcobotantes a segurar-lhe a consistência do construído, que começou a retirar, telha a telha, a cobertura do hangar.
Noite de vento, prenúncio uivante da tragédia, entre os elementos furiosos que quase o arrancavam dali, vime seco de um mundo vegetal já morto, prosseguiu, metódico, persistente, a raiva mordendo-lhe a alma, o seu trabalho, abrindo espaço para o surgimento da obra.
Pela madrugada surgia, majestoso, o pináculo final, uma flecha erguida aos céus, o remate final do seu trabalho.
Abaixo, vista daquele ponto de remate, a sua galeria de imagens, talhadas durante os anos do seu desemprego, recortadas no tosco em madeira doce a golpes de formão e aplainadas com a minúcia manual da sua grosa, amiga e companheira que tantas vezes, escapando-se, distraída, lhe mordera as mãos.
Quando foi encontrado morto, no alto da sua tresloucada edificação, a cidade embaraçada tinha, na zona oriental a Xabregas, como se a encomendá-lo, num defunctis pagão, todo o exército silencioso dos seus santos, os heróis do trabalho, mártires da Revolução, os apóstolos do ideal redentor que professara.