18 junho 2012

A praia de gaivotas sonolentas

É o primeiro capítulo do que tenta, há meses, ganhar asas e poder ser um livro. Mas, confuso consigo mesmo, esgravata-se, remexidamente, sem saber como sair do enclausurado onde caiu. A ser uma história seria fácil de contar, ainda que inventada. O título não será o que acima está. A capa é um quadro de Hugo Bernardo.


«Escrevera um livro sobre sentimentos com uma história ficcionada. Quando o leu, temendo-o autobiográfico, viu que era sobre a vida que poderia ter tido. Agora, sentado num cubículo da existência, imaginava um livro sobre ideias. O medo da ficção levava-o para a tentação da realidade. Havia nele algo de essencial que tinha, porém, deixado de existir.
Todos os dias, pelas quatro da tarde, a hora de visita. Esperou a sua vez meses a fio, certo da existência de um mundo exterior e de alguém que o descobrisse. Até ao momento derradeiro em que todos os outros regressavam taciturnos, consolados pelo acto triste que é ser-se visitado, nunca desistiu de pensar que um dia isso também lhe sucederia, tornando-se possível. Foi então que Deus teve piedade. Transformou-lhe o mundo carnal existente no mundo imaterial dos conceitos. A vida tornou-se uma ideia. Perdera substância.
Naquele local, diga-se, Deus não era uma questão de crença, uma eventualidade de fé, sim um produto da gestação humana. Nascera prematuro e devia a vida à pouca medicina de um enfermeiro, único amparo ali possível, lugar de pedras e devastação, que acorreu quando a mãe, a esvair-se, pedia que se trocasse a sua vida por aquela vida, mordendo-se de dor e pena. Foi assim que sucedeu o facto de ter sobrevivido, ainda sem saber hoje para quê.
Tinha cinquenta e oito anos, um rosto escalavrado e os olhos recolhidos a esconderem o interior de vida incógnita. Nunca se lhe ouvira história sobre a família que era justo tivesse tido, nem o relato daquela outra gente que lhe surgira como parentela e a quem quis, querendo-os até que o não quiseram.
Diziam que se chamava João. Quando ali dera entrada, vindo de uma esquina que ajudara a conspurcar com a sua miséria, tornando-a tão repelente como o desinteresse dos que se agoniavam consigo, evitando-o, não trazia documentos nem queria dizer onde se poderiam encontrar. O mutismo parecia ser a sua defesa. Olhavam-nos desconfiados.
Iniciara-se aí o vazio que faz todos os outros sentirem-se uma excrescência na sua vida, o horror por causa do qual dizem ainda agora nada terem a ver consigo. Surgiu-lhe, pois, o mundo como ausência. As pessoas haviam-se retirado de si, ausentando-se.
Em vez de ter inventado uma biografia, fantasiou um corpo. Fez-se homem dizia para poder ser Deus. Num momento de êxtase deu-se a vertigem da passagem. Foi aí que o diagnosticaram.
Como todos os deuses, também ele tinha um Céu. A diferença é que o tinha perdido na voragem da Terra. Passava agora as noites olhando, absorto, o firmamento, mesmo quando as nuvens lhe roubavam as estrelas.
Uma vez alguém, divertido com humilhá-lo, perguntou-lhe se no seu Céu havia anjos. Foi a primeira vez que, ao olhá-lo, a Humanidade de todos os demais se perguntou se não seria cego, a expressão imóvel, os olhos indiferentes. Era, porém, uma Humanidade pequena em número e escassa de subtilezas. A rudeza convive com a simplificação das formas e a singeleza dos conteúdos. E expressa-se pela indiferença.
Naquele lugar, diga-se «A Humanidade» era o nome alcunhado de uma ala das enfermarias, onde se arrecadavam os mais mansos, aqueles que podiam passear a sua indiferença pelos corredores desertos do antigo convento, à espera de alguma coisa que tivessem oportunidade de evitar, mas cuja inexorabilidade lhes ditava a sorte, feita destino.
Era um local de indivíduos que tinham deixado de ser pessoas. Conheciam-se pelo número da cama, antecedido pela letra da camarata. Os números mais altos eram os dos mais velhos, porque ali a lotação era contada e quando se chegava a um percebia-se que não podia haver zero. Por isso estava tudo em numeração romana, para que o zero não tivesse oportunidade.
A Natureza sempre teve horror ao vazio, a ideia do nada é-lhe estranha. Mesmo naqueles corredores escrupulosamente encerados o nada era uma inviabilidade. Um remoto eco de passos, ou o reflexo de uma luz, solar ou eléctrica simulavam presença, corpo, ser, existência. Ao aproximar-se a penumbra, a noite povoa-se de seres imaginários.
Havia noites ali em que, porém, o silêncio fazia medo, dias em que a algazarra dava vontade de gritar. Uma dia um deles suicidou-se e por umas semanas «A Humanidade» ficou triste, por faltar um número e ninguém sabia quem o substituiria para que o zero não surgisse e assim o vácuo na forma de ausência de qualquer coisa que fosse.
Talvez tivesse sido o oblíquo do sol e o reflexo da sua luz num instante do imenso vitral. O arco-íris, soma refractada de uma luz branca que é calor, projectava-se, inevitável, na parede em frente do refeitório, onde as bocas ruminantes, mesmo até as desdentadas, almoçavam sopa de couves tristes e uns peixes em escabeche que só um mar ignoto e ressequido de salinidade poderia ter albergado, mumificando-os para os tornar de vida em alimento rude. E Deus sorriu, uivando como um cão.
Naquele dia começou esta história. Aquele sorriso feito de animalidade e assim ternura feita só de carinho sem mais razão, momento inaugural da felicidade entre os homens, era a devolução da paz que, como um fogo primitivo, aos homens tivesse sido roubado.
Alumiando-se pelas noites de eucaristia pagã, palmilhando os corredores e seu labirinto, enclavinhando nas mãos tochas fumegantes, velas cuja luminosidade bruxuleava mesmo no segundo em que, incertas, quase se lhes fenecia o sopro de luz, indecisas acendalhas, homens saíam de lugares desconhecidos caminhando errantes para parte nenhuma, celebrando a comunhão da substância num corpo sacrificado. Num pacto de silêncio, as bocas contidas, crime feito expiação de todos os outros crimes por cumprir. Irrealizados.
Agora, porém, contagiados pelo riso, como crianças para quem a irrequietude é contentamento, agitando no interior dos seus corpos incumpridos o rugir da existência, vogavam pela terra da ilusão, mãe da arte de marear pelos céus do Desconhecimento.
João contou-lhes então uma história de um homem que era marinheiro e encontrou Cristo, filho de pescador.
Tinha sido tudo numa praia, praia como todas as praias arenosas, ainda que sem banhistas, praia de gaivotas sonolentas e um mar feito só rebentação e rochas descarnadas, em que tudo acontece. Naquele dia era Inverno. A Natureza proporcionava-se, fêmea.
Penso que o Cristo, dos mais antigos era naquele lugar, já não existirá e a praia talvez já nem esteja assim. Ficou, porém uma ideia, precisamente a génese deste livro de ideias de quem receou um livro sobre sentimentos. Mesmo que seja uma história fictícia de sentimentos reais.»