Sábado de tarde.
Sala após sala, hoje todas vazias.
Fechadas umas, entreabertas outras, as portas dos gabinetes alinhavam-se ao longo do corredor, o dele o último, à esquerda, já houve tempos em que «o senhor doutor, lamento, mas é raro estar aqui, terá de fazer a fineza de marcar». Agora era como se não tivesse mais para onde ir, o estar equivalente a ser encontrável, a oferecer-se, estando, a que o encontrassem.
O Verão chegara antes do tempo, na forma de um fim-de-semana sem gente e de um sol a amarelecer a vida, encarquilhando-lhe os restos, assim se não fechassem nas gelosias as tabuinhas.
Nunca se sabe como se chega a ser o que se é.
Primeiro fora a lenta agonia da profissão, o mal que lhe fazia sofrê-la de dia e odiá-la de noite. Agora, como se tudo não tivesse uma história a intervalar o tempo, a tê-lo poupado ao longo e dorido acto de vivê-la, estava assim, inerte, indiferente de sentimentos, vazio de ideias.
Ficaram-lhe, nas estantes, preciosidades antigas, na forma de livros que tinham caído em desuso, a encadernação como réstia de uma importância agora ilusória. Sentado onde estava, já não conseguia ler-lhes as lombadas, adivinhando-os pelo lugar de onde há tanto tempo não saíam. Nesta tarde, neste sábado de agonia abafada, olhava-os com o gesto contido, o espírito parado, longe dali.
E, no entanto, durante tantos anos, estes livros bafientos agora, mas que já tinham sido novos e úteis e até como colegas prestáveis, tinham sido companhia, enxada, por vezes o desespero. Nalguns anotara mesmo, com caligrafia miúda, apontamentos, tantos em meias folhas de bloco, momentos de interpretação, o exteriorizar de uma dúvida, a extensão de um comentário.
Lembrou então o facto, o que esta história conta.
Talvez tivesse sido também num sábado, ou num domingo de tarde, quando ainda é pior estar-se no escritório fechado, amputada pela clausura a vida e deformado pelo isolamento o ser.
Parecia-lhe hoje tudo tão longínquo que dificilmente conseguia reter na consciência actual ou fixar na memória passada uma data para o que acontecera. Tinham-lhe ficado, porém, impressos no sentir magoado os pormenores do que sucedera, mesmo os mais insignificantes.
Esquecera-se de todo que, na segunda-feira, lhe acabaria, impreterível, o prazo de um dos poucos processos que ainda tinha; pior, o prazo para fazer o que adiara toda a semana, sem vontade, na mira de um halo de resignação que o levasse a sujeitar-se a ter de o fazer.
À força de empurrar para o fundo da memória aquela obrigação insuportável, o espírito, apiedado, fizera com que se esquecesse.
Foi pela hora de almoço que veio ao consciente de si a lembrança.
Por essa altura ainda teria família, almoçava-se muita vez perto de casa, num restaurante que se tornou impossível.
Contrariado, sentara-se, sentindo a agonia do papel em branco, a desesperante falta de vontade.
Começara com o sacramental «Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito do Tribunal Judicial de» para logo se afligir com o saber a que tribunal se deveria dirigir, entre o labirinto de regras de competências e de conflitos territoriais e o receio de que um engano, com o prazo a acabar, lhe pudesse ser fatal.
Continuou então, linha a linha, o pensamento a escorrer-lhe para o papel, o desconforto de imaginar que já nem tinha quem lhe dactilografasse o que escrevesse.
Foi então que lhe pareceu que alguém batera à porta.
Primeiro, toques tímidos, hesitantes, depois, porque a campainha não funcionava sempre naquele escritório em que, lentamente, tudo deixaria definitivamente de funcionar, um bater mais claro, mais nítido, como se um sou eu familiar, a aflição de um abre-me.
Desperto para um exterior de onde há tanto tempo quase nem o correio lhe chegava, deu consigo, os passos abafados pelo velho tapete, corredor afora, num «já vou, por favor espere», em que só a vergonha escondia a súplica murmurada do «não se vá» e a alegria gritada do «é para mim!».
Era de facto.
Morava na mesma rua, do outro lado do passeio, num andar de um prédio gémeo, dos que viram ainda passar carroças de lavadeiras e amoladores galegos, a roda de afiar e os cortadores de gaforinas ao domicílio, corte curta a franjinha que é para mais durar.
Sabia-o advogado, desde há muitos anos, vira-o no ir e vir afadigado dos tempos em que tinha pressa.
Assistira à sucessão dos seus automóveis, conhecia-lhe, como se fosse o seu, o guarda-roupa, a sucessão primeiro de roupa nova em cada estação, o estabilizar, enfim, no velho sobretudo, os sapatos amassados nos pés timoratos do caminhar miúdo.
Vizinha, partilhara o prédio e suas rendas com uma irmã, solteira como ela, anos a fio e com ele uns quantos outros espalhados, nem ao menos em propriedade horizontal, por essa Lisboa em ruínas, na Madragoa um, o mais antigo, em que uma mercearia caduca era o que sobejava de arrendável, no Alto do Pina outro, cedido, sem contrato sequer, a uma garagem de recolhas que outrora ainda fora de reparações até que o mecânico se reformara e o filho do dono se resolvera a arrendar o espaço como armazém de estacionamento.
Era a vida imobiliária que a trazia ali.
Lentamente, ano após ano, a doença da irmã, primeiro atirando-a para o desatino doméstico das atitudes incompreensíveis e depois para um lar, nas Avenidas Novas, onde foi encontrada sem sentidos num dia anónimo em que chovia, haviam feito dela o último ramo subsistente da família e a única herdeira da fortuna por dividir; mas uma fortuna em ruínas, prédios entaipados e esvaziados de uso, alguns só em paredes, como muros altos de matagais imensos e coito de vadios e indigentes sem casa e outros animais rastejantes.
Tratava-se de conseguir, por entre os labirintos da burocracia, evitando os alçapões do Direito, tornar aquele museu paleolítico, verdadeira pedreira urbana que em tempos tinha sido pequenos palacetes e geminadas moradias, algo de rentável, que vendido ao menos ao desbarato desse dinheiro para uma vida decente que a tirasse daquele envergonhado remedeio, recordações antigas como única companhia.
Negócio promissor, encontrara enfim, nos últimos dias, a solução milagrosa que a penúria lhe não permitia, na forma de um atrevido promotor que de tudo faria habitação de luxo e condomínio fechado para gente ansiosa de viver bem e temerosa de viver em insegurança.
«E em que posso ser-lhe útil», arriscou, uma bruxuleante luz a acender-se-lhe nos olhos, o velho advogado, vendo surgir-lhe ali, enfim, para os últimos anos da vida, um trabalho capaz que o devolvesse às lides, ao menos ocupação do tempo que o fizesse sentir-se um homem útil, rendimento valioso que lhe permitisse outra vez um viver desafogado.
Porque, tal como a criatura que aquele sábado de tarde lhe trouxera, como se o piedoso destino tivesse girado em seu favor a roda da fortuna, também ele era um emparedado pelos escombros do que amealhara.
Soterrado em livros que eram a arqueologia de um Direito que o tempo tornara caduco, arquivo abarrotado de processos que haviam passado de vez para o rol dos casos findos, a memória esfrangalhada de histórias de gente que já nem vivia para as poder contar.
Todos os casos em que se envolvera, os processos em que litigara, os acordos que conseguira firmar, o mais insuportável cliente e o mais rebaixado colega, a galeria dos seus horrores parecia ter-se convocado para aquela saleta poeirenta, que a luz do sol tentava abocanhar com hálito quente e devorador.
«Desculpe-me, não sei se serei oportuna, ainda por cima ao fim de semana», rápida a voz, prático o espírito, «obrigado, mas não vale a pena sentar-me, é rápido».
E de facto era: parte do negócio envolvia a venda do prédio onde estava aquele escritório, a demolição, o despejo certo, o ter de negociar com os novos senhorios, gente difícil, «desculpe-me mas compreende não é? Não temos outra alternativa e na sua idade também trabalho já não terá muito».
O estertor do silêncio deu o sinal da compreensão. A vida encarregara-se de resolver.
Saiu, tímida, hesitante, uma possível última frase por dizer, o advogado gentil a acompanhá-la à porta, mas enfim recomposta, a figura, a pose, a postura, adejando como liberta e de novo retornada aos tempos áureos, talvez mais nova não sem um «que calor está aqui, estes reposteiros não lhe tornam o ar irrespirável?».
No dia seguinte encontraram-no enforcado, a língua ridícula de grossa, o corpo a defecar-se, imundo e triste.
Sala após sala, hoje todas vazias.
Fechadas umas, entreabertas outras, as portas dos gabinetes alinhavam-se ao longo do corredor, o dele o último, à esquerda, já houve tempos em que «o senhor doutor, lamento, mas é raro estar aqui, terá de fazer a fineza de marcar». Agora era como se não tivesse mais para onde ir, o estar equivalente a ser encontrável, a oferecer-se, estando, a que o encontrassem.
O Verão chegara antes do tempo, na forma de um fim-de-semana sem gente e de um sol a amarelecer a vida, encarquilhando-lhe os restos, assim se não fechassem nas gelosias as tabuinhas.
Nunca se sabe como se chega a ser o que se é.
Primeiro fora a lenta agonia da profissão, o mal que lhe fazia sofrê-la de dia e odiá-la de noite. Agora, como se tudo não tivesse uma história a intervalar o tempo, a tê-lo poupado ao longo e dorido acto de vivê-la, estava assim, inerte, indiferente de sentimentos, vazio de ideias.
Ficaram-lhe, nas estantes, preciosidades antigas, na forma de livros que tinham caído em desuso, a encadernação como réstia de uma importância agora ilusória. Sentado onde estava, já não conseguia ler-lhes as lombadas, adivinhando-os pelo lugar de onde há tanto tempo não saíam. Nesta tarde, neste sábado de agonia abafada, olhava-os com o gesto contido, o espírito parado, longe dali.
E, no entanto, durante tantos anos, estes livros bafientos agora, mas que já tinham sido novos e úteis e até como colegas prestáveis, tinham sido companhia, enxada, por vezes o desespero. Nalguns anotara mesmo, com caligrafia miúda, apontamentos, tantos em meias folhas de bloco, momentos de interpretação, o exteriorizar de uma dúvida, a extensão de um comentário.
Lembrou então o facto, o que esta história conta.
Talvez tivesse sido também num sábado, ou num domingo de tarde, quando ainda é pior estar-se no escritório fechado, amputada pela clausura a vida e deformado pelo isolamento o ser.
Parecia-lhe hoje tudo tão longínquo que dificilmente conseguia reter na consciência actual ou fixar na memória passada uma data para o que acontecera. Tinham-lhe ficado, porém, impressos no sentir magoado os pormenores do que sucedera, mesmo os mais insignificantes.
Esquecera-se de todo que, na segunda-feira, lhe acabaria, impreterível, o prazo de um dos poucos processos que ainda tinha; pior, o prazo para fazer o que adiara toda a semana, sem vontade, na mira de um halo de resignação que o levasse a sujeitar-se a ter de o fazer.
À força de empurrar para o fundo da memória aquela obrigação insuportável, o espírito, apiedado, fizera com que se esquecesse.
Foi pela hora de almoço que veio ao consciente de si a lembrança.
Por essa altura ainda teria família, almoçava-se muita vez perto de casa, num restaurante que se tornou impossível.
Contrariado, sentara-se, sentindo a agonia do papel em branco, a desesperante falta de vontade.
Começara com o sacramental «Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito do Tribunal Judicial de» para logo se afligir com o saber a que tribunal se deveria dirigir, entre o labirinto de regras de competências e de conflitos territoriais e o receio de que um engano, com o prazo a acabar, lhe pudesse ser fatal.
Continuou então, linha a linha, o pensamento a escorrer-lhe para o papel, o desconforto de imaginar que já nem tinha quem lhe dactilografasse o que escrevesse.
Foi então que lhe pareceu que alguém batera à porta.
Primeiro, toques tímidos, hesitantes, depois, porque a campainha não funcionava sempre naquele escritório em que, lentamente, tudo deixaria definitivamente de funcionar, um bater mais claro, mais nítido, como se um sou eu familiar, a aflição de um abre-me.
Desperto para um exterior de onde há tanto tempo quase nem o correio lhe chegava, deu consigo, os passos abafados pelo velho tapete, corredor afora, num «já vou, por favor espere», em que só a vergonha escondia a súplica murmurada do «não se vá» e a alegria gritada do «é para mim!».
Era de facto.
Morava na mesma rua, do outro lado do passeio, num andar de um prédio gémeo, dos que viram ainda passar carroças de lavadeiras e amoladores galegos, a roda de afiar e os cortadores de gaforinas ao domicílio, corte curta a franjinha que é para mais durar.
Sabia-o advogado, desde há muitos anos, vira-o no ir e vir afadigado dos tempos em que tinha pressa.
Assistira à sucessão dos seus automóveis, conhecia-lhe, como se fosse o seu, o guarda-roupa, a sucessão primeiro de roupa nova em cada estação, o estabilizar, enfim, no velho sobretudo, os sapatos amassados nos pés timoratos do caminhar miúdo.
Vizinha, partilhara o prédio e suas rendas com uma irmã, solteira como ela, anos a fio e com ele uns quantos outros espalhados, nem ao menos em propriedade horizontal, por essa Lisboa em ruínas, na Madragoa um, o mais antigo, em que uma mercearia caduca era o que sobejava de arrendável, no Alto do Pina outro, cedido, sem contrato sequer, a uma garagem de recolhas que outrora ainda fora de reparações até que o mecânico se reformara e o filho do dono se resolvera a arrendar o espaço como armazém de estacionamento.
Era a vida imobiliária que a trazia ali.
Lentamente, ano após ano, a doença da irmã, primeiro atirando-a para o desatino doméstico das atitudes incompreensíveis e depois para um lar, nas Avenidas Novas, onde foi encontrada sem sentidos num dia anónimo em que chovia, haviam feito dela o último ramo subsistente da família e a única herdeira da fortuna por dividir; mas uma fortuna em ruínas, prédios entaipados e esvaziados de uso, alguns só em paredes, como muros altos de matagais imensos e coito de vadios e indigentes sem casa e outros animais rastejantes.
Tratava-se de conseguir, por entre os labirintos da burocracia, evitando os alçapões do Direito, tornar aquele museu paleolítico, verdadeira pedreira urbana que em tempos tinha sido pequenos palacetes e geminadas moradias, algo de rentável, que vendido ao menos ao desbarato desse dinheiro para uma vida decente que a tirasse daquele envergonhado remedeio, recordações antigas como única companhia.
Negócio promissor, encontrara enfim, nos últimos dias, a solução milagrosa que a penúria lhe não permitia, na forma de um atrevido promotor que de tudo faria habitação de luxo e condomínio fechado para gente ansiosa de viver bem e temerosa de viver em insegurança.
«E em que posso ser-lhe útil», arriscou, uma bruxuleante luz a acender-se-lhe nos olhos, o velho advogado, vendo surgir-lhe ali, enfim, para os últimos anos da vida, um trabalho capaz que o devolvesse às lides, ao menos ocupação do tempo que o fizesse sentir-se um homem útil, rendimento valioso que lhe permitisse outra vez um viver desafogado.
Porque, tal como a criatura que aquele sábado de tarde lhe trouxera, como se o piedoso destino tivesse girado em seu favor a roda da fortuna, também ele era um emparedado pelos escombros do que amealhara.
Soterrado em livros que eram a arqueologia de um Direito que o tempo tornara caduco, arquivo abarrotado de processos que haviam passado de vez para o rol dos casos findos, a memória esfrangalhada de histórias de gente que já nem vivia para as poder contar.
Todos os casos em que se envolvera, os processos em que litigara, os acordos que conseguira firmar, o mais insuportável cliente e o mais rebaixado colega, a galeria dos seus horrores parecia ter-se convocado para aquela saleta poeirenta, que a luz do sol tentava abocanhar com hálito quente e devorador.
«Desculpe-me, não sei se serei oportuna, ainda por cima ao fim de semana», rápida a voz, prático o espírito, «obrigado, mas não vale a pena sentar-me, é rápido».
E de facto era: parte do negócio envolvia a venda do prédio onde estava aquele escritório, a demolição, o despejo certo, o ter de negociar com os novos senhorios, gente difícil, «desculpe-me mas compreende não é? Não temos outra alternativa e na sua idade também trabalho já não terá muito».
O estertor do silêncio deu o sinal da compreensão. A vida encarregara-se de resolver.
Saiu, tímida, hesitante, uma possível última frase por dizer, o advogado gentil a acompanhá-la à porta, mas enfim recomposta, a figura, a pose, a postura, adejando como liberta e de novo retornada aos tempos áureos, talvez mais nova não sem um «que calor está aqui, estes reposteiros não lhe tornam o ar irrespirável?».
No dia seguinte encontraram-no enforcado, a língua ridícula de grossa, o corpo a defecar-se, imundo e triste.