03 junho 2010

A vida a escoar-se

Uns dias depois não sabiam onde estavam.
A cidade tornara-se confusa, labirintos os caminhos, duvidosas as ruas.
Começaram primeiro por não saber para onde iam, depois já nem sabiam de onde vinham.
Ganharam o hábito embaraçoso de perguntar. Percebia-se que eram estrangeiros pobres, menos pelo muito que agradeciam sobretudo pelo medo estampado no rosto ao formular a perguntar, assustados pela pouca terminologia, à mercê da gramática alheia.
Hesitantes e por isso cambaleavam, cambados, ensarilhavam-se uns nos outros os doridos pés. Eram três, um deles o mais novo.
O lugar da sua origem, a País do nascimento, a Pátria das convicções, tudo evanescera. Restava a antiguidade das suas figuras, as roupas desusadas, um modo de parecer que o tempo tinha encerrado.
O lugar tornara-se-lhe terra de exílio. Já não eram cidadãos e tinham para o serem cumprido o ritual burocrático e o desnecessário. Desalfandegados pela nacionalidade, haviam-se tornado eleitores, contribuintes.
Funcionários houve que meticulosamente se tinham ocupado dos seus insignificantes casos como se fossem importantes. Resumidos em fichas sinaléticas, detalhados em processos, sujeitos a informações, pareceres, objecto da consideração superior, haviam merecido atenção primeiro despacho no fim.
Nada disso interessava, porém, agora.
A expressão transida do medo entranhado na pele marcava-os e seguia-os. Dir-se-iam acossados.
Aninhados uns nos outros, vagueavam as paredes como abrigo, os esconsos esconderijos.
Há no hálito dos fugidos, no turvo empestante na urina que deles escorre, na incontinência do pavor, o estigma do crime de cuja expiação fogem. No seu caso fugiam de o praticar.
A voz do sangue, antiquíssima voz, língua acre e vingativa, bífido sinal de emboscada a nascer nos confins da mente, raiava-lhes o branco sujo dos olhos. O ódio entumescente sufocava-lhe a garganta e asfixiava o coração.
Vindos do lugar confinado da raiva, tinham-se confiado a um Deus maldoso que lhes entregasse a sua presa.
Aconteceu ali, onde a rua se esgota numa parede. Primeiro o rosnar da surpresa, o arfar da gula, predadores esfaimados, logo de seguida um golpe só e a vida a escoar-se sujando a valeta gordurosamente. Enfim a desfiguração.
Quanto saíram a massa informe espezinhada que deixaram para trás havia sido uma pessoa.
Nesse dia iniciou-se o seu regresso à cidadania.
Ao covil dos homens regressavam as feras saciadas. No dia seguinte as autoridades as removeram um corpo e sua razão para um coval e para um arquivo respectivamente, forma administrativa de se esquecerem.