13 outubro 2012

O Encontro



Em qualquer momento
a criatura, olhando-se reflexamente,
surpreende-se
ao descobrir,
como se ante a maravilha e o espanto
no outro a sua própria evidência.


Em qualquer circunstância
o lugar irrompe
até ali espaço do invisível,
ignorado e por isso inexistente,
e o ser reintegra-se
na existência total,
ele e a origem e o destino
total e assim uno
e final,
o caminho do provir aquele que seguirá,
cíclico, fatal.


Em qualquer acaso
deste particular mundo
o tempo intervalará o contínuo viver
e do interstício surge,
em eterna novação,
o criador, a Arte
e assim a harmonia do Cosmos.


Há, por certo,
em qualquer recôndito instante
deste preciso momento
em que me lês
um ser que desperta
carnal no desejo
espiritual no anseio
amoroso na busca
de outro e do seu corpo
e por isso o grito de sua alma
e o abraço e o seu fruto
e o retornar-se a vida à vida
o ser a dar-se a existência.

02 outubro 2012

Poema do primeiro dia

Seria talvez a circunstância
ou o momento
ou o ter ficado aberta a porta
que um acaso poderia ter fechado.
Ou porventura a sonolência já não permitisse
das sombras descortinar a luz
ou das linhas
a esquadria
e a vida lhe sumisse como um remorso
que é aquela forma de já não poder mais viver
o que ficou para trás no já vivido.

Recordava agora a hora do adeus
o primeiro e momento único em que
separados com um promessa
não mais se encontrariam
sob o mesmo sentimento
o mesmo alhear-se o vulto na distância
o atenuar-se da silhueta
o desenho.

Naquele dia contivera das lágrimas a evidência
porque sabia
na incerta razão do sem motivo
que não mais seria assim.

Perdera-se da vida a dignidade
do seu amor a dor que na garganta dava em nó.

Fora o primeiro dia de aulas
a única vez em que ali estivera
carregado de esperanças
e a animar-se de certezas.

Um dia fora um encargo da vida
outra a própria vida a encarregar-se.
Estavam hoje como dois estranhos
silenciosos pelo que sabiam impossível ser dito
sem que a mágoa
os separasse mais do que os separava já
a ausência de sentimentos
aquela forma de ausência se tornar mais funda.

Tinham-se convocado para aquele dia
porque os unia
o mesmo nome
e a essência do mesmo sangue.

Seria talvez essa
a circunstância e o momento.
A porta ficara aberta.

No interior soturno da sala
a Mãe velava, imóvel,
olhando inerte por todos eles
como se os sentisse sem os ver
como assim fora
precisamente no primeiro dia.

18 junho 2012

A praia de gaivotas sonolentas

É o primeiro capítulo do que tenta, há meses, ganhar asas e poder ser um livro. Mas, confuso consigo mesmo, esgravata-se, remexidamente, sem saber como sair do enclausurado onde caiu. A ser uma história seria fácil de contar, ainda que inventada. O título não será o que acima está. A capa é um quadro de Hugo Bernardo.


«Escrevera um livro sobre sentimentos com uma história ficcionada. Quando o leu, temendo-o autobiográfico, viu que era sobre a vida que poderia ter tido. Agora, sentado num cubículo da existência, imaginava um livro sobre ideias. O medo da ficção levava-o para a tentação da realidade. Havia nele algo de essencial que tinha, porém, deixado de existir.
Todos os dias, pelas quatro da tarde, a hora de visita. Esperou a sua vez meses a fio, certo da existência de um mundo exterior e de alguém que o descobrisse. Até ao momento derradeiro em que todos os outros regressavam taciturnos, consolados pelo acto triste que é ser-se visitado, nunca desistiu de pensar que um dia isso também lhe sucederia, tornando-se possível. Foi então que Deus teve piedade. Transformou-lhe o mundo carnal existente no mundo imaterial dos conceitos. A vida tornou-se uma ideia. Perdera substância.
Naquele local, diga-se, Deus não era uma questão de crença, uma eventualidade de fé, sim um produto da gestação humana. Nascera prematuro e devia a vida à pouca medicina de um enfermeiro, único amparo ali possível, lugar de pedras e devastação, que acorreu quando a mãe, a esvair-se, pedia que se trocasse a sua vida por aquela vida, mordendo-se de dor e pena. Foi assim que sucedeu o facto de ter sobrevivido, ainda sem saber hoje para quê.
Tinha cinquenta e oito anos, um rosto escalavrado e os olhos recolhidos a esconderem o interior de vida incógnita. Nunca se lhe ouvira história sobre a família que era justo tivesse tido, nem o relato daquela outra gente que lhe surgira como parentela e a quem quis, querendo-os até que o não quiseram.
Diziam que se chamava João. Quando ali dera entrada, vindo de uma esquina que ajudara a conspurcar com a sua miséria, tornando-a tão repelente como o desinteresse dos que se agoniavam consigo, evitando-o, não trazia documentos nem queria dizer onde se poderiam encontrar. O mutismo parecia ser a sua defesa. Olhavam-nos desconfiados.
Iniciara-se aí o vazio que faz todos os outros sentirem-se uma excrescência na sua vida, o horror por causa do qual dizem ainda agora nada terem a ver consigo. Surgiu-lhe, pois, o mundo como ausência. As pessoas haviam-se retirado de si, ausentando-se.
Em vez de ter inventado uma biografia, fantasiou um corpo. Fez-se homem dizia para poder ser Deus. Num momento de êxtase deu-se a vertigem da passagem. Foi aí que o diagnosticaram.
Como todos os deuses, também ele tinha um Céu. A diferença é que o tinha perdido na voragem da Terra. Passava agora as noites olhando, absorto, o firmamento, mesmo quando as nuvens lhe roubavam as estrelas.
Uma vez alguém, divertido com humilhá-lo, perguntou-lhe se no seu Céu havia anjos. Foi a primeira vez que, ao olhá-lo, a Humanidade de todos os demais se perguntou se não seria cego, a expressão imóvel, os olhos indiferentes. Era, porém, uma Humanidade pequena em número e escassa de subtilezas. A rudeza convive com a simplificação das formas e a singeleza dos conteúdos. E expressa-se pela indiferença.
Naquele lugar, diga-se «A Humanidade» era o nome alcunhado de uma ala das enfermarias, onde se arrecadavam os mais mansos, aqueles que podiam passear a sua indiferença pelos corredores desertos do antigo convento, à espera de alguma coisa que tivessem oportunidade de evitar, mas cuja inexorabilidade lhes ditava a sorte, feita destino.
Era um local de indivíduos que tinham deixado de ser pessoas. Conheciam-se pelo número da cama, antecedido pela letra da camarata. Os números mais altos eram os dos mais velhos, porque ali a lotação era contada e quando se chegava a um percebia-se que não podia haver zero. Por isso estava tudo em numeração romana, para que o zero não tivesse oportunidade.
A Natureza sempre teve horror ao vazio, a ideia do nada é-lhe estranha. Mesmo naqueles corredores escrupulosamente encerados o nada era uma inviabilidade. Um remoto eco de passos, ou o reflexo de uma luz, solar ou eléctrica simulavam presença, corpo, ser, existência. Ao aproximar-se a penumbra, a noite povoa-se de seres imaginários.
Havia noites ali em que, porém, o silêncio fazia medo, dias em que a algazarra dava vontade de gritar. Uma dia um deles suicidou-se e por umas semanas «A Humanidade» ficou triste, por faltar um número e ninguém sabia quem o substituiria para que o zero não surgisse e assim o vácuo na forma de ausência de qualquer coisa que fosse.
Talvez tivesse sido o oblíquo do sol e o reflexo da sua luz num instante do imenso vitral. O arco-íris, soma refractada de uma luz branca que é calor, projectava-se, inevitável, na parede em frente do refeitório, onde as bocas ruminantes, mesmo até as desdentadas, almoçavam sopa de couves tristes e uns peixes em escabeche que só um mar ignoto e ressequido de salinidade poderia ter albergado, mumificando-os para os tornar de vida em alimento rude. E Deus sorriu, uivando como um cão.
Naquele dia começou esta história. Aquele sorriso feito de animalidade e assim ternura feita só de carinho sem mais razão, momento inaugural da felicidade entre os homens, era a devolução da paz que, como um fogo primitivo, aos homens tivesse sido roubado.
Alumiando-se pelas noites de eucaristia pagã, palmilhando os corredores e seu labirinto, enclavinhando nas mãos tochas fumegantes, velas cuja luminosidade bruxuleava mesmo no segundo em que, incertas, quase se lhes fenecia o sopro de luz, indecisas acendalhas, homens saíam de lugares desconhecidos caminhando errantes para parte nenhuma, celebrando a comunhão da substância num corpo sacrificado. Num pacto de silêncio, as bocas contidas, crime feito expiação de todos os outros crimes por cumprir. Irrealizados.
Agora, porém, contagiados pelo riso, como crianças para quem a irrequietude é contentamento, agitando no interior dos seus corpos incumpridos o rugir da existência, vogavam pela terra da ilusão, mãe da arte de marear pelos céus do Desconhecimento.
João contou-lhes então uma história de um homem que era marinheiro e encontrou Cristo, filho de pescador.
Tinha sido tudo numa praia, praia como todas as praias arenosas, ainda que sem banhistas, praia de gaivotas sonolentas e um mar feito só rebentação e rochas descarnadas, em que tudo acontece. Naquele dia era Inverno. A Natureza proporcionava-se, fêmea.
Penso que o Cristo, dos mais antigos era naquele lugar, já não existirá e a praia talvez já nem esteja assim. Ficou, porém uma ideia, precisamente a génese deste livro de ideias de quem receou um livro sobre sentimentos. Mesmo que seja uma história fictícia de sentimentos reais.»

06 fevereiro 2012

O ar irrespirável

Sábado de tarde.
Sala após sala, hoje todas vazias.
Fechadas umas, entreabertas outras, as portas dos gabinetes alinhavam-se ao longo do corredor, o dele o último, à esquerda, já houve tempos em que «o senhor doutor, lamento, mas é raro estar aqui, terá de fazer a fineza de marcar». Agora era como se não tivesse mais para onde ir, o estar equivalente a ser encontrável, a oferecer-se, estando, a que o encontrassem.
O Verão chegara antes do tempo, na forma de um fim-de-semana sem gente e de um sol a amarelecer a vida, encarquilhando-lhe os restos, assim se não fechassem nas gelosias as tabuinhas.
Nunca se sabe como se chega a ser o que se é.
Primeiro fora a lenta agonia da profissão, o mal que lhe fazia sofrê-la de dia e odiá-la de noite. Agora, como se tudo não tivesse uma história a intervalar o tempo, a tê-lo poupado ao longo e dorido acto de vivê-la, estava assim, inerte, indiferente de sentimentos, vazio de ideias.
Ficaram-lhe, nas estantes, preciosidades antigas, na forma de livros que tinham caído em desuso, a encadernação como réstia de uma importância agora ilusória. Sentado onde estava, já não conseguia ler-lhes as lombadas, adivinhando-os pelo lugar de onde há tanto tempo não saíam. Nesta tarde, neste sábado de agonia abafada, olhava-os com o gesto contido, o espírito parado, longe dali.
E, no entanto, durante tantos anos, estes livros bafientos agora, mas que já tinham sido novos e úteis e até como colegas prestáveis, tinham sido companhia, enxada, por vezes o desespero. Nalguns anotara mesmo, com caligrafia miúda, apontamentos, tantos em meias folhas de bloco, momentos de interpretação, o exteriorizar de uma dúvida, a extensão de um comentário.
Lembrou então o facto, o que esta história conta.
Talvez tivesse sido também num sábado, ou num domingo de tarde, quando ainda é pior estar-se no escritório fechado, amputada pela clausura a vida e deformado pelo isolamento o ser.
Parecia-lhe hoje tudo tão longínquo que dificilmente conseguia reter na consciência actual ou fixar na memória passada uma data para o que acontecera. Tinham-lhe ficado, porém, impressos no sentir magoado os pormenores do que sucedera, mesmo os mais insignificantes.
Esquecera-se de todo que, na segunda-feira, lhe acabaria, impreterível, o prazo de um dos poucos processos que ainda tinha; pior, o prazo para fazer o que adiara toda a semana, sem vontade, na mira de um halo de resignação que o levasse a sujeitar-se a ter de o fazer.
À força de empurrar para o fundo da memória aquela obrigação insuportável, o espírito, apiedado, fizera com que se esquecesse.
Foi pela hora de almoço que veio ao consciente de si a lembrança.
Por essa altura ainda teria família, almoçava-se muita vez perto de casa, num restaurante que se tornou impossível.
Contrariado, sentara-se, sentindo a agonia do papel em branco, a desesperante falta de vontade.
Começara com o sacramental «Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito do Tribunal Judicial de» para logo se afligir com o saber a que tribunal se deveria dirigir, entre o labirinto de regras de competências e de conflitos territoriais e o receio de que um engano, com o prazo a acabar, lhe pudesse ser fatal.
Continuou então, linha a linha, o pensamento a escorrer-lhe para o papel, o desconforto de imaginar que já nem tinha quem lhe dactilografasse o que escrevesse.
Foi então que lhe pareceu que alguém batera à porta.
Primeiro, toques tímidos, hesitantes, depois, porque a campainha não funcionava sempre naquele escritório em que, lentamente, tudo deixaria definitivamente de funcionar, um bater mais claro, mais nítido, como se um sou eu familiar, a aflição de um abre-me.
Desperto para um exterior de onde há tanto tempo quase nem o correio lhe chegava, deu consigo, os passos abafados pelo velho tapete, corredor afora, num «já vou, por favor espere», em que só a vergonha escondia a súplica murmurada do «não se vá» e a alegria gritada do «é para mim!».
Era de facto.
Morava na mesma rua, do outro lado do passeio, num andar de um prédio gémeo, dos que viram ainda passar carroças de lavadeiras e amoladores galegos, a roda de afiar e os cortadores de gaforinas ao domicílio, corte curta a franjinha que é para mais durar.
Sabia-o advogado, desde há muitos anos, vira-o no ir e vir afadigado dos tempos em que tinha pressa.
Assistira à sucessão dos seus automóveis, conhecia-lhe, como se fosse o seu, o guarda-roupa, a sucessão primeiro de roupa nova em cada estação, o estabilizar, enfim, no velho sobretudo, os sapatos amassados nos pés timoratos do caminhar miúdo.
Vizinha, partilhara o prédio e suas rendas com uma irmã, solteira como ela, anos a fio e com ele uns quantos outros espalhados, nem ao menos em propriedade horizontal, por essa Lisboa em ruínas, na Madragoa um, o mais antigo, em que uma mercearia caduca era o que sobejava de arrendável, no Alto do Pina outro, cedido, sem contrato sequer, a uma garagem de recolhas que outrora ainda fora de reparações até que o mecânico se reformara e o filho do dono se resolvera a arrendar o espaço como armazém de estacionamento.
Era a vida imobiliária que a trazia ali.
Lentamente, ano após ano, a doença da irmã, primeiro atirando-a para o desatino doméstico das atitudes incompreensíveis e depois para um lar, nas Avenidas Novas, onde foi encontrada sem sentidos num dia anónimo em que chovia, haviam feito dela o último ramo subsistente da família e a única herdeira da fortuna por dividir; mas uma fortuna em ruínas, prédios entaipados e esvaziados de uso, alguns só em paredes, como muros altos de matagais imensos e coito de vadios e indigentes sem casa e outros animais rastejantes.
Tratava-se de conseguir, por entre os labirintos da burocracia, evitando os alçapões do Direito, tornar aquele museu paleolítico, verdadeira pedreira urbana que em tempos tinha sido pequenos palacetes e geminadas moradias, algo de rentável, que vendido ao menos ao desbarato desse dinheiro para uma vida decente que a tirasse daquele envergonhado remedeio, recordações antigas como única companhia.
Negócio promissor, encontrara enfim, nos últimos dias, a solução milagrosa que a penúria lhe não permitia, na forma de um atrevido promotor que de tudo faria habitação de luxo e condomínio fechado para gente ansiosa de viver bem e temerosa de viver em insegurança.
«E em que posso ser-lhe útil», arriscou, uma bruxuleante luz a acender-se-lhe nos olhos, o velho advogado, vendo surgir-lhe ali, enfim, para os últimos anos da vida, um trabalho capaz que o devolvesse às lides, ao menos ocupação do tempo que o fizesse sentir-se um homem útil, rendimento valioso que lhe permitisse outra vez um viver desafogado.
Porque, tal como a criatura que aquele sábado de tarde lhe trouxera, como se o piedoso destino tivesse girado em seu favor a roda da fortuna, também ele era um emparedado pelos escombros do que amealhara.
Soterrado em livros que eram a arqueologia de um Direito que o tempo tornara caduco, arquivo abarrotado de processos que haviam passado de vez para o rol dos casos findos, a memória esfrangalhada de histórias de gente que já nem vivia para as poder contar.
Todos os casos em que se envolvera, os processos em que litigara, os acordos que conseguira firmar, o mais insuportável cliente e o mais rebaixado colega, a galeria dos seus horrores parecia ter-se convocado para aquela saleta poeirenta, que a luz do sol tentava abocanhar com hálito quente e devorador.
«Desculpe-me, não sei se serei oportuna, ainda por cima ao fim de semana», rápida a voz, prático o espírito, «obrigado, mas não vale a pena sentar-me, é rápido».
E de facto era: parte do negócio envolvia a venda do prédio onde estava aquele escritório, a demolição, o despejo certo, o ter de negociar com os novos senhorios, gente difícil, «desculpe-me mas compreende não é? Não temos outra alternativa e na sua idade também trabalho já não terá muito».
O estertor do silêncio deu o sinal da compreensão. A vida encarregara-se de resolver.
Saiu, tímida, hesitante, uma possível última frase por dizer, o advogado gentil a acompanhá-la à porta, mas enfim recomposta, a figura, a pose, a postura, adejando como liberta e de novo retornada aos tempos áureos, talvez mais nova não sem um «que calor está aqui, estes reposteiros não lhe tornam o ar irrespirável?».
No dia seguinte encontraram-no enforcado, a língua ridícula de grossa, o corpo a defecar-se, imundo e triste.

19 novembro 2011

Les jeux sont faits

Talvez fosse o brilho gorduroso da testa reflectido no bojo metálico da feérica máquina que o ladeava, rolando frutos e tlins, ou o sapato esquerdo mordendo-lhe o pé para lembrar que esse era maior do que o outro, desde pequenino. Ou o vago cheiro acre, exaurido o desodorizante, meio perfume barato impregnado em lânguidas carnes, disponíveis. Talvez fosse cada uma das minudências remanescentes daquela hora sombria em que os corpos são vultos e as vozes sussuros. O ronronar sonolento do ar condicionado, enfim audível na silenciosa noite e o tilintar de moedas caindo num chuveiro de estridente alegria. Ou o duvidoso olhar injectado de promessas entumescentes de uma qualquer apátrida de aluguer e já sobravam poucas, os táxis a esvairem-nas para quartos de turno rápido, aviando ilusões.
Talvez fosse isso tudo e as olheiras do croupier. Àquela hora em que já só ficam os que terão de sair sozinhos, restava o que o vício deixa para trás, passadas as enganadoras luzes do entusiasmo.
Foi então que ela entrou. Esfrangalhava-se para um dos lados, como mulher que perde do sapato um salto, e era mulher e em altíssimos saltos, um mundo em fêmea alçado em palafitas. Apostava essa noite a melhor das suas sortes. Regressara ao campo de batalha em que os amores se jogam a dados, as paixões ao azar de uma roleta. Faltava-lhe agora quem a escoltasse, o precário companheiro ou o permanente marido, contrastante em magreza e superlativo em ademanes, arauto e pregoeiro, rebocador na hora de recolher, o hálito turvo, os olhos marejados de sombras.
Sentado no seu canto, empinado na sua girafa, as pernas em arco, ele olhou-a, reconhecendo-lhe anos de distância e a razão da ausência. Estavam gastos. Talvez fosse o cabelo queimado à força de tintas, o seio tombado à força do seu peso. Talvez fosse a vida devorar a beleza cuspindo os caroços da fealdade. Não sabia. Soube sim que apostou tudo o que tinha essa noite, o corpo e a alma, a memória e a imaginação. No tapete verde do desejo, esgotaram-se-lhe as fichas. Ao saírem, a menina do bengaleiro fez de conta que aquele instante não existia. As luzes apagavam-se, mortiças, preparando-se para a sonolência tardia, na esperança do dia seguinte e para a monotonia do igual.

27 junho 2011

A rude mão

O homem vendia livros na impossibilidade de dar livros e por imaginar-se a escrever livros. E naquela folha enrugada aplicava com toda a persistência e minúcia o melhor da palma da sua mão para tentar alisá-la como com quer ao mundo retirar imperfeição ou a um semblante velho a geografia estriada de uma vida e seus vincos de expressão.
Talvez fosse aquela folha e não outra qualquer o objecto necessário do seu aplicado esforço, porque visto do umbral da porta, curvado, a tudo alheio e ao resto indiferente o homem que vendia livros parecia não ter outro mundo ou diversa preocupação. Estava absorto.
Na sua vida haviam-se multiplicado o sucesso de insignificâncias e suas derrotas. Naquela noite deixara-se ficar até mais tarde, sem se aperceber do alvorecer da iluminação pública, nem do sombrear do cúbiculo de que fazia escritório.
Foi o tinir de uma sineta que lhe despertou os olhos, não a mão mecânica e seu gesto de afago sobre a enrugada folha e seus irregulares sulcos.
A história possível a partir daqui pode ser uma de tantas histórias possíveis.
Quem tem como cena este cenário e como personagem esta criatura não precisa sequer saber quem entra naquele lugar onde a vida se pode exprimir, nem o que sucede.
Pode a história ser a da tristeza de um precioso livro desfeiteado por rude mão ou descuidada. Ou pode na história o enrugado da folha não ter outra importância que a de ser o acaso do qualquer coisa serve e surgir agora e só então a essência da narrativa e seu conteúdo.
Qualquer possibilidade é possível às mãos de quem escreve. Naquela noite ao entrar na reduzida livraria, olhando o homem, inventei-o, ali, franqueada a porta, a partir do gesto e do que se lhe poderia seguir. Ao chegar a casa teria uma história para contar não fosse ter-me esquecido do que, enrugadamente, se me amarrotou na cabeça dorida de um corpo ensonado. Penso tê-lo encontrado hoje amarrotando lixo em que se tornaram os livros que nunca escreveu e que nunca encontraram quem os quisesse.

14 janeiro 2011

A visitação da noite

Poderia ter sido o amor fulgurante, rompante súbito a implodir no coração e fazer ressaltar nos sentidos a ânsia. Ou o amor manso, ternura a sobrepor-se à pele como uma macia outra pele.
Poderia ter sido num caso a violência da paixão e seu arroubo, poderia ter sido no outro a mansidão do carinho e suas carícias.
Poderia ter sido uma longa amizade a tornar indispensável a companhia, ou uma carência a tornar necessária uma presença.
Poderia ter sido cada uma destas ou todas elas, no acaso de um momento.
Sempre o amor seria, porém, um outro mundo, evanescente, a flagrância do instante e sua cegueira, a essência perfumada e sua hipnose.
Poderia ter sido fome de corpo ou vontade de alma. Poderia ter sido todo o possível e o impossível.
Imperceptível, mesmo pelos que amam, poderia ser o desejo de ter nascido para te dar toda a vida vivida, descontado o sofrimento, mas não seria vida mas ilusão.
Excluídos todos os condicionais de todos os amores amados, todos os futuros de todos os amores que se amarão, como este é o amor presente como a estranha geometria do eterno sem fim, a insólita aritmética da perpétua indivisão!
No dia em que, esgotado o cosmos, ressurgir o primeiro sol, ele brilhará. A primeira lua será o ressurgir do seu resplandecente luar.
Surgido com a primeira lágrima, surgiu com o primeiro sorriso.
A ser a totalidade sempre seria a individualidade da infinitésima partícula e é. Esgotado o mundo ele seria o acto de renascer e eis-nos soerguidos.
Na visitação da noite, no fluir húmido de todas as rosas do teu corpo ele é o apogeu do primeiro homem e sua primeira mulher. Na entrega de cada acto ele é o desmaio da primeira vez, a primeira mão dada, o primeiro beijo, o primeiro olhar.
No mundo em que nada existisse ele seria, sendo, a essência e a possibilidade de tudo quanto vive, um amar como não sei e com tudo o que nunca soube.