27 junho 2011

A rude mão

O homem vendia livros na impossibilidade de dar livros e por imaginar-se a escrever livros. E naquela folha enrugada aplicava com toda a persistência e minúcia o melhor da palma da sua mão para tentar alisá-la como com quer ao mundo retirar imperfeição ou a um semblante velho a geografia estriada de uma vida e seus vincos de expressão.
Talvez fosse aquela folha e não outra qualquer o objecto necessário do seu aplicado esforço, porque visto do umbral da porta, curvado, a tudo alheio e ao resto indiferente o homem que vendia livros parecia não ter outro mundo ou diversa preocupação. Estava absorto.
Na sua vida haviam-se multiplicado o sucesso de insignificâncias e suas derrotas. Naquela noite deixara-se ficar até mais tarde, sem se aperceber do alvorecer da iluminação pública, nem do sombrear do cúbiculo de que fazia escritório.
Foi o tinir de uma sineta que lhe despertou os olhos, não a mão mecânica e seu gesto de afago sobre a enrugada folha e seus irregulares sulcos.
A história possível a partir daqui pode ser uma de tantas histórias possíveis.
Quem tem como cena este cenário e como personagem esta criatura não precisa sequer saber quem entra naquele lugar onde a vida se pode exprimir, nem o que sucede.
Pode a história ser a da tristeza de um precioso livro desfeiteado por rude mão ou descuidada. Ou pode na história o enrugado da folha não ter outra importância que a de ser o acaso do qualquer coisa serve e surgir agora e só então a essência da narrativa e seu conteúdo.
Qualquer possibilidade é possível às mãos de quem escreve. Naquela noite ao entrar na reduzida livraria, olhando o homem, inventei-o, ali, franqueada a porta, a partir do gesto e do que se lhe poderia seguir. Ao chegar a casa teria uma história para contar não fosse ter-me esquecido do que, enrugadamente, se me amarrotou na cabeça dorida de um corpo ensonado. Penso tê-lo encontrado hoje amarrotando lixo em que se tornaram os livros que nunca escreveu e que nunca encontraram quem os quisesse.