01 setembro 2008

Não se brinca com facas

Próximo, o momento mais perigoso do dia, a hora exacta de amanhecer; a noite pode roubar-nos tudo, sub-reptícia, emboscada, surpreendendo-nos no sono, hipnotizando-nos no sonho, a noite pode transmutar-nos e acordar-se disforme, revoltoso, olhar-se para a insuportabilidade de todas as coisas com as quais se viveu em soporífera indiferença
Sentei-me, esgotado da vigília. Olhei longamente a rua comprida, o olhar distante, um automóvel rumo ao infinito horizonte. Voltei a sentar-me, a cama meticulosamente feita e em frente dela a pequena secretária arrumada até ao pormenor, totalmente inútil, o tampo coberto de livros, papéis, bugigangas, sei lá
As luzes de cena vão enfraquecendo, um candeeiro apenas para vencer a escuridão, a luz quebrada, o pesado reposteiro
Há quantas horas estou aqui? Que noite é esta, estrangeira, que me cerca ainda, pegajosa noite, a impossível noite, a de que vejo a silhueta do seu fim, a progressiva madrugada? De quantos dias são feitas tantas horas, e quantas horas faltam para estes dias, estou tão cansado dos olhos e de tanto ver
E a dor, a persistente dor, a mão aberta em leque sobre o dorso, tacteio, a zona dos rins, uma faca aguda cravada aqui, um estilete, dói-me, espreguiço-me, estou sem um sapato, desequilibrado, coxo e uma perna dormente descalço-me, não andes descalço que te constipas, tantas vezes me constipei em garoto, não, agora já não tenho anginas, cortaram-me as amígdalas, há quantos anos que sou grande, mas agora é só esta dor, há quantas horas já é noite e quanto até que chegue o fim da noite e quanto falta para todos os dias, amanhã tens de acordar cedo, andas a dar cabo de ti meu rapaz, eu sei
[continua aqui]