27 junho 2010

Não te esqueças do meu isqueiro

Uma peça em três actos, escrita por José António Barreiros

[representada no dia 21 de Maio de 2009 no pátio do Tribunal da Boa-Hora pelos actores Jorge Sequerra e José Neto, da companhia teatral A Barraca]



A, vinte anos, jeans e camisola, um recém-chegado à justiça.

B, quarenta anos, vestido com alguma elegância, fato e colete, mas um toque de ridículo, velho frequentador dos tribunais.



A decoração é a de um calabouço. Mobila-o um catre, um balde. Ao fundo uma parede com uma porta baixa encimada por uma grade. As paredes estão cheias de inscrições. A está agachado no catre, B entra pela porta do fundo. O tom inicial, lúgubre muda rápido para histriónico.





I ACTO

A, sentado, debruçado sobre si, lamenta-se; na cena seguinte entra B por uma porta do fundo e inicia-se um diálogo entre ambos.



A: [respiração ofegante, ladainha de lamúria]

[pausa]

B [entrando, como se de rompante, por uma pequena porta e depois de uma pequena pausa]: apresenta-se um ilusionista ao seu serviço…um…mas isto agora vai com choradeiras?

[Pausa]

B [olhando fixamente para A depois de lhe soerguer lentamente o queixo]: mas tu não falas? [pausa] Perdeste a língua, puto? [mira-o e olha para a assistência] Olha, perdeu! Logo aqui…numa casa de tanto palavrear! [pausa. A está profundamente abatido].

A [faz com a mão um gesto sacudido, de repúdio]

B [após um longo silêncio, abanando a cabeça, reprovador]: Estás murcho! Já vi! Pato mudo. Vais lindo! Lindo mesmo! Vai lá para cima assim e vais ver! Depenam-te! Em água fria!

A [olhos esgazeados]: lá para cima? O senhor disse lá para cima?

B: sim lá para cima, que mais em baixo não podes estar, pá! Ou que julgas? Isto quando se entra aqui no buraco depois é sempre a subir, a longa escadaria em que te inicias na arte de caminhar [faz com a mão um arco de objecto a subir]. Sempre. [sibila]. Sempre! Ou nunca ouviste falar nos tribunais superiores? [soletra a palavra; ri-se].

[Pausa]

B: nunca ouviste, está visto! Nunca passaste das primeiras instâncias. É da idade! [pausa; vira-se para a assistência]. Só pode. Coitadito! E pode pouco.

A: não ouvi não [abatido], nem quero ouvir. Deixe-me.

B: também serve, puto, também serve. Vai dar ao mesmo. Não é por se conhecer melhor estes labirintos que um tipo se safa aos escaninhos, jardins de plantas venenosas. [ar professoral] Olha com o meu advogado foi o mesmo. Sabia tudo direitinho, até a excepção do caso julgado. E, estás a ver, safei-me à alteração não substancial mas apanhei cinco anos. Agora, cá estou de novo! Nem sei porquê. Mas para o caso tanto monta. Foi tudo anulado.

[Pausa]

B [para o público]: …que este patinho ainda vai ter muito que sofrer. Muito mesmo. Tanto...é uma espécie de tristeza a dias, a esfregar escadas na rua suja…

A: o senhor sabe que horas são?

B: horas? Mas porquê? Estás com pressa? [ri-se] Tens onde ir, é?

[Pausa. A fecha-se].

B: pronto, vá, puto, não te piques, pá. Se um tipo não descontrai, é pior, gaita. Ou pensas que aqui há paciência para doridos? Dói a todos, queres o quê? Vem para aí besuntado de melindres que vais ver para onde te vão os ossos. Vá, são quase duas. Quase duas da tarde. Lá pelas seis estás feito [vira-se para o público]. Completamente feito [volta a olhar para A]. Isso se não te adiarem.

A [atónito]: adiarem?

B: olha este! Adiarem pois. Ou julgas que isto também não vive de adiamentos? Faz-se um, adiam-se outros, é assim. Depois vêm os recursos e adia-se tudo. É como a morte. Vai-se adiando. A diferença é que aqui às vezes é sine die.

A: mas se o meu já foi adiado... Da outra vez nem cheguei a sair do estabelecimento.

B: pois, melhor ainda. Já não estranhas. E vais descontando, puto. No final custa-te menos. [pausa] Ou pensas que te livras assim? Isto leva o seu tempo, amigo. O tempo é a chave desta coisa. Tempo! Tempo! Muito tempo mesmo…aprende a usufruir o grande vazio do nada e o ritual do quase nada! É uma arte para quem não tem para onde ir, saber andar obliquando

[Pausa]

B: pois é assim, miúdo. Duas horas! Horas! Horas nas boas horas! [olha-o fixamente]. Não te ris? Não, já vi… Mas olha, não te preocupes com as horas. Que em vez de uma balança deviam pôr um relógio nos tribunais. Um relógio como nos caminhos-de-ferro. Uma espécie de fita métrica a medir as horas na Boa-Hora. Não… espera, um cronómetro. O símbolo do aguenta. [pausado] Espera mais… melhor ainda, uma ampulheta. [cantarola] Grão a grão. Areia, areia, faz-se a duna. A duna, puto…

A: a duna?

B: precisamente. A duna. Miragens, muitas miragens, mirabolantes, que é o que há mais aqui, e areia, um grão de areia na engrenagem [ri-se, desconexo]. Mas tudo com calma. [fala lentamente]. Muita calma. Não há pressa, aliás no deserto não há sequer para onde ir. No deserto não se sai nunca do deserto. É isso. Acabou-se a pressa. O tempo é grande, indefinido, incerto. Só o espaço é curto. Muito curto. Confinado, acanhado, exíguo, mas espaço [enfático]. Isto é que é falar bem, puto! [vira-se, trespassando-o com o olhar] Olha, que tal a ramona? Aconchegadinha, não? [meiguinho] Como a barriguinha da mamã? [Cínico] Ou como o quarto escuro, quando te punham de castigo [longínquo, fala para o céu]...de castigo! Crime e castigo! [olha-o; ri-se, voz melíflua]. Está prontinho para o castigo? Para o tautau?

[Pausa. Escurece a cena].



[A e B de pé. A de costas para B]

[Pausa]

A: o senhor está aqui por quê?

B: por nada! Por estar cansado do Inverno!

[Pausa]

B: por nada, pois. E tu, puto, calculo que por nada também! Deves ter como eu fome de sol!

A: por nada, não! Fui burlado.

B: burlado? Ah! E estás dentro? Fantástico!

A: sim. Estou dentro.

[Pausa]

B: é pá, puto, explica lá melhor, que essa não entra, aqui.

A: foi a bófia.

B: a bófia…?

A: sim a bófia. Enganaram-me. Julgava que era um cliente à séria e olha saiu-me um…

B [ênfase]: ah! Um infiltrado?

[Pausa]

B: um provocador?

A: sim, disso.

B: enganou-te?

A: sim!

B: [melífluo] bandido! Isto já nem há moral neste mundo. [Cínico] Pagou ao menos?

A: pagou, mas agora ficaram-me com a massa e com a droga.

B: e isso não é crime?

A: pois é. Uma burla.

B: eh puto, queixa-te dos gajos. Ou te ficam com a droga… ou com a massa. Ou não há gente engavetada por menos?

A: acha?

B: não acho. [enfático] Tenho a certeza. Só não é assim porque há Direito mas não há moral [melífluo]. São restos amolecidos do país. Sobejos! A enganarem o menino. Onde é que já se viu. Safados…

A: mas vender droga também não é muito moral…!

B: nem comprá-la, e o gajo comprou-ta. Homessa!

A: mas enganou-me…

B: ora aí está o ponto. Engana-te, palma-te a droga e mais a massa e és tu quem vais de cana. Lindo, não é? É uma inconsciência de vida…

A: já nem sei. Já nem sei mesmo, acredite!

B [virando-se para a assistência, em segredo, a meia-voz]: já nem sabe. Prontinho de todo. Este está prontinho de todo. Baralhado, que já nem sei. Mais um pouco e está condenado…antes mesmo da sentença. Acontece a todos: deixam de perceber que não têm razão e qualquer razão lhes passa a servir. Vão pelo cano abaixo. De esgoto. Condenam-se antes de alguém os condenar. De repente há um que sai absolvido [ri-se cinicamente]

B [voltando-se para A]: olha lá e tu papas do que vendes?

A: como?

B: como? Se comes, pá? Grande tanso! Consomes ou vendes só? És o rei do tesouro fabuloso ou o dono da cobra que o guarda? A ambição é e picada mortal!

A: consumir, eu? Não. Está maluco ou quê? Eu não percebo o que o senhor diz!..

B [mudando de semblante, agora sombrio]: não, não estou, maluco, meu sacana e tu o que não percebes, cala-te! Só fala quem chegou à idade de dizer! Sei o que é desgraça dessa porra! Tenho-a lá em casa…

[pausa]

B: graças a gajos como tu, que nem consomem ao menos o lixo que vendem! Gajos como tu que vivem da química da destruição! Fazes comércio com o Inferno!

A: como eu, uma ova! Só compra quem quer! E eu não obrigo ninguém a comprar!

B: não obrigas, não! Mas exploras o vício, parasitas à conta dele! E olha a ver se te vicias! Se te apanham na rede em que fazes cair tanta gente! Tu és o que está sempre de fora, sempre aquém!

A: olhe lá, deixe-se disso. Não tenho nada a ver com a desgraça que vai lá na sua casa!

B [subitamente enraivecido, chegando-se a A e filando-o]: tu não me fales na minha casa, cão! Que eu não to admito, ouviste! Já me basta o chumbo da miséria! Safados da tua espécie são a desgraça de muita gente… [larga-o]. E eu sei o que tenho de viver! Tu e os que se multiplicam contigo, tudo isso, como uma só coisa, como uma só serpente feita de muitas serpentes…abre-se-vos a porta e eis o caos!

A [sacudindo-se, como se a limpar o pó da roupa e a falar sozinho]: olha, querem ver lá este! Armado em moralista, agora. Um gajo que vive a enganar as pessoas…agora a dar lições! Eu ao menos não engano ninguém! Ainda dou consolo à dor de muita gente, o que é tu queres, ó falinhas?

B: falinhas?

A: o senhor desculpe-me! Mas irritou-me estar a insultar. Eu não lhe perguntei pela sua vida… e eu trafico por necessidade!

B: vai lá cima contar essa, vai! Sais com o pêlo rente…

A: pensa que a desgraça é só para uns?

B [pesado]: não, não penso. Acho que vocês estão todos com trampa até ao pescoço! Já ninguém se salva. Virem aqui ou não é-vos igual. Condenarem-vos é apenas para se dizer que parece mal. Vocês só servem para gastar dinheiro. Já não há ressurreição possível para quem está tão morto que perdeu a capacidade de nascer.

A: mas o senhor não me disse, afinal, que horas são!

B: meia-noite em ponto, Cinderela. Hora de andar descalço, livre do peso dos metais! Ah! Excepto a grilheta, o arrastar da grilheta, espécie de cão [ri-se]

[escurece a cena]



B: bom, mas deixemos isso, morto que não ressurges. Mal ou bem estamos na mesma carruagem, não é? Para o mesmo destino…

A: mas diga lá o senhor, vá, está aqui porquê?

B: olha… a mania de ser original! Sabes o que é o homem da bomba que estica o rastilho? Sou eu! É um artista do bum e vais pelos ares com o seu engenho! Pum! Perverso, não é?

A: não estou a perceber…

B: nem tens que perceber! Perceberás um dia, deixa agora. Aliás pouco importa a minha história. Há tanta história neste lugar… estes muros escorrem histórias. São histórias, histórias, histórias, são a História disto tudo, a História Invisível deste lugar, que aprendes tacteando nestas paredes. Só tu, desgraçado, é que nem história tens. A tua é a tanga igual a tantas outras. Coitado de quem tiver que te gramar.

A: dito assim até faz medo…

B: sim, medo! Medo mesmo! Como o segredo guardado no interior hermético da garrafa negra! E sabes porquê? Porque no fim torna-se tudo igual, monótono, supinamente aborrecido. É um lugar maldito, este. Amaldiçoado. Quem anda por cá já topa toda a malta de cor. Ainda por cima são todos inocentes como tu, amarrados aos cordão nodoso da esperança de salvação! Tu és apenas uma gavinha nesta árvore frondosa. Tipos como tu não deitam raízes ao chão, quebram-se de um golpe. De misericórdia.

A: não me goze. Eu não sou inocente, não quero é ser culpado!

B: pois tens razão. És cá dos meus! Não quero que culpem a minha não inocência! Agora é que tiveste uma tirada de mestre! Nunca pensaste ir para advogado com uma conversa dessas?

A: eu? Está a gozar comigo. Mas olhe, se isto está endemoninhado, talvez chegando-lhe fogo…

B: fogo? tão ruim que é não arde! Ardeu o Chiado, ardeu a Inquisição ali ao Rossio, isto não. Está carregado de maldade…

A: e porque não arde?

B: Sei lá. São só pedras. Pedras, e as perdas não ardem. [Vira-se para a assistência] Bem, a memória, essa também não arde, embora queime. E há quem se queime com ela. Olá se há!

A: mas o senhor não nota aqui um cheiro a enxofre?

B: No Reino do Enxofre há um espelho no qual se vê o mundo inteiro..

A: o quê? Isso parece tudo tão misterioso…

B: …e tão transparente…

[pausa]

B: detesto memórias. Detesto! Tudo isto vive disto, lá em cima são todos exploradores da memória alheia. Estão no altar das ladainhas, de sotaina preta! Malditos! É um mundo do [melífluo] «não se lembra»? Vem o acusado e tenta lembrar-se, coitado, faz das tripas miolos..

A: coração?

B: o quê?

A: faz das tripas coração! É assim que se diz…

B: cale-se! O menino quer levar um estalo? Desmentem-se assim os mais velhos?! Vem o acusado, coitado, e tenta lembrar-se…

A: não! Vem o acusado e tenta lembrar-se, coitado…o coitado é depois de lembrar-se não depois de acusado!

B: Bem! Estou tramado contigo! Mas tu és dos que vêm para aqui com a cantiga ensinada?

A: não, o senhor é que primeiro disse de uma maneira agora de outra..

B: [virando-se para a assistência]: este gajo ainda termina Procurador da República…cá com a mania de passar rasteiras ao pessoal!

[pausa]

B: posso continuar ou não posso continuar?

A: desculpe!

B: vem o acusado, coitado, e tenta lembrar-se, coitado, pronto ficas contente assim? Vem o acusado duplo coitado e faz das tripas miolos, mas a memória escorrega-lhe…para o ralo da conveniência. [melífluo] «O senhor só se lembra do que lhe convém…». Vem a vítima, e lembra-se de tudo, mas de repente dá-lhe uma pancada de medo e começa a esquecer-se. [melífluo] «Então agora não se lembra? Veja lá, minha senhora, faça um esforço! Está nervosa, é?». E depois vem o polícia que esse então lembra-se de tudo. Tudo, tudo. São mesmo para esquecer!

[pausa]

A: tem vergonha de contar a sua vida, é?

B: não!

A: está zangado comigo? O que tem?

B: tenho uma coisa chamada o desejo de que não me chateiem. Sabes como é? É das coisas que deviam vir na Constituição!

A: mas eu já lhe falei de mim e o senhor parece ter receio de falar na sua pessoa.

B: olha que a vergonha se calhar é igual. [Ríspido] Tu achas isto aqui, o quê? O muro das lamentações? Aprende meu rapaz! Isto aqui é como em relação a certas marquesas e outros condes! Nunca se pergunta se são verdadeiros, mesmo quando tocam a quebrado…

A: e lá em cima, eles querem saber?

B: saber de quê?

A: da história, das nossas histórias, da minha, da sua…

B: eles? Evitam... São profissionais, pá. Achas que lhes interesse o que não interessa? Olha lá, isto não é um confessionário em que o desgraçado padre leva com tudo e as botas que lhe querem despejar. Lá em cima eles é que dizem o que querem ouvir! Vais ver. Aprenderás a descobrir os que têm cara de sentido proibido. Com sorte talvez o teu advogado faça de sinaleiro. Em caso de dúvida, cala-te. Nunca digas que não te lembras! Eles ficam desapontados contigo…

A: mas…e a verdade? Não interessa?

B: verdade? Mas qual verdade? Ela há tantas…

A: então, mas já não há uma só verdade?

[pausa]

B: [Num murmúrio] ouve-me uma coisa, garoto. Pára com essa treta da verdade e da mentira, que essa aqui não pega. São décadas à volta do mesmo. Estes tipos devem estar fartos. Olha, eu estaria! Aprende! Aprende comigo nesta hora que levamos disto! Neste buraco, como afinal na vida lá fora, conta sim o efeito, o efeito e não a santinha da verdade.

A: o efeito…

B: sim, precisamente o efeito. A impressão que causa o que dizes num coração mole, a utilidade dos teus argumentos nos que jogam na roleta das conveniências. É isso a verdade. O efeito que parece real, o efeito que dá resultado. Tenta, puto, tenta. Eles não podem escapar-te, mesmo quando não gostam de ti, nem evitar-te mesmo quando têm de te fazer mal.

A: e se tudo isso falhar?

B: falhamos todos! A Justiça é a ilusão de que isso funcione! Fazemos todos o que nos é possível…

A: mas como posso safar-me?

B: contando uma história de ti que te torne irreconhecível! Faz com que aquele que sair condenado seja outro que não tu. Um outro lado de ti. Não importa. Não lhes dês a oportunidade de te apanharem a alma! Tenta safar-te. Olha, só tens uma possibilidade: safares-te com uma história. Que não contradiga muito o que está no processo. Mas que não seja muito igual. Esta malta desconfia de coincidências e vive a explorar contradições. Para eles o mundo é uma questão de lógica! Julgam o que acham nunca seriam capazes de fazer. Por isso condenam, para se absolverem…

A: e o senhor, conta safar-se?

B: eu sou um artista, rapaz. Todo o artista é incompreendido…

A: artista de quê?

B: da cópia de grandes obras. Tudo o que de grande se produziu na Humanidade eu tento fazer igual. Desde que resolveram criminalizar as Belas-Artes estou nisto. Misturado com gajos como tu, com o devido respeito pelos outros gajos…



II ACTO



A: ai, ai.

B: mas ai, ai, porquê, se posso saber?

A: por coisa nenhuma!

B: bem me parecia. Vocês tornam-se uns inúteis do lamento inútil. São da especialidade dos que choram sem chorar…parece que precisam de estar infelizes para terem sentimentos! Não largam a braguilha do choramingado…

A: mas acha que eu estou bem…?

B: nem tu nem ninguém que isto aqui é só desgraça, babugem, ou achas que há por aqui histórias felizes? Ninguém é feliz aqui! É uma cloaca de despejos a caminho do rio do esquecimento! Está tudo preso mesmo os que julgam que só nós estamos presos! Presos! [vira-se para a assistência e aponta para cima]: estão todos presos a nós! Os nossos casos, as nossas vidas aprisionam-nos! É essa a nossa vingança suprema! São heróis a arrastarem correntes que os agrilhoam a nós…

A: não sei. É a minha primeira vez.

B: com sorte talvez não seja a última… [vira-se para o público] há que garantir a continuação da espécie, não? Não se riem? [Faz uma careta]. Compreendo-vos bem. A espécie tem vindo a degradar-se. Pilecas destas, com vidas que parecem de aluguer.

A: olhe, desculpe, mas para que hora está o senhor marcado?

B: o senhor está marcado para as duas, ó seu exercício de estupidez, espécie de corpo sem espírito nem alma!

A: e eu para a uma e meia.

B: tanto faz! As horas aqui são sempre a partir das. Depois logo de vê. A coisa vai-se ajustando. Deixa que, quando chegar a tua hora, eles chamam. Aqui ninguém se esquece de ti. Quando não há vento, vai-se a remos!

A: nunca aconteceu?

B: sei lá. Acho que não! Às vezes lembram-se um pouco tarde, distraem-se!

A: já vi que as suas certezas são sempre ao nível do acho.

B: e lá em cima, achas que é melhor? Ou não viste escrito lá fora, na parede, que «a sentença é uma opinião»?

A: lá fora?

B: sim, lá fora. Ao pé das limonadas. Ou já apagaram?.. Porque há sempre um lá fora mesmo cá dentro. Mesmo dentro de ti. A liberdade é uma luz. É já não haver limite para coisa alguma. Um dia perceberás que é essa a liberdade, a liberdade de fugires de ti, encontrando o alçapão que te permita escapar para o infinito.

A: uma espécie de túnel, como o antigo de Campolide.

B: ora precisamente. Vês como aprendes depressa? Mas…olha lá…falaste em Campolide, porquê?

A: calhou. Paro por lá.

B: paras por lá, como? Vives lá?

A: não! Vivo agora! Avio clientes por ali.

B [como se falando para si próprio]: avias clientes por Campolide, é? E costumas bater muito por ali?

A: quando calha! Tem dias…

B: a tua cara de ziguezague diz-me qualquer coisa!

[pausa, a cena escurece]



B [esquadrinhando a parede]: olha que bela literatura…

A [olhando vagamente interessado]: qual?

B: qual? Esta! É pá, que a malta agora esmera-se! Então agora já prendem escritores?

A: ora…

B: ora? Olha vê-me só esta «somos fruto de uma geração, que nos julgam totalmente incapazes de tomarmos nossas próprias decisões, por amarmos de uma forma totalmente louca, mas real».

[pausa; B continua a ler pelas paredes…]

B: olha outro «estamos aqui desde as 14:00 e já são 18:30. Estamos loucas e a nossa injustiça já foi feita. A droga que trouxemos era pura. É ouro! Matava mais gente… da próxima trazemos açúcar e vamos perdoadas ou apanhamos mais cana».

A: são mulheres?

B: só pode. Olha-me para isto que é coisa de gaja «só Deus vivo é o juiz que nos pode perdoar e tirar do cativeiro. Ele é a verdade, a luz e o perdão. Crê e ele te salvará!»

A: ena pai! Deve ter levado uma boa castanha, com tanta fé e tanta esperança.

B [rindo-se]: vá, não faças pouco de quem tem fé! Quando falha a esperança, resta a fé! Hás-de aprender! O desespero toma conta de ti a tal ponto que chegas tu e o teu pavor a terem o mesmo cheiro! Olha, esta é demais! «Hirondina é desta que vais para casa amiga, mas não te esqueças do meu isqueiro!».

[pausa]

B: Haja Deus! Só nos faltava estar num calabouço para gajas, das que se esforçam por esquecer que existem. Ao que um homem chega…

A: mas elas também vão muito de cana?

B: não tanto quanto merecem… Estou a brincar, vê lá! Estou a brincar…

A: coitadas delas.

B: sim, coitadas. Há gente capaz de emporcalhar tudo só com um olhar, sabes?

A: a que propósito vem isso?

B: deixa lá. Agora sou eu: deixa-me em paz! É uma lembrança que pedala dentro de mim…



[pausa]

[A e B deitados, lado a lado, no mesmo catre. B soerguer-se-á, colocando-se perto das grades]

B: que horas são?

A: porquê? Está com pressa? Não sabe marcar passo?

B: engraçadinho…

A: porquê? Não me diga que não tive graça?

B: nenhuma. Não tiveste mesmo graça nenhuma. Se queres saber.

A: não quero não.

B: falta-te sentido de humor, miúdo. Ris do que não tem piada. E olha que o homem é o único animal que ri.

A: a hiena também.

B: também não teve piada.

A: ora ainda bem.

[pausa]

B: [suspira] mas afinal não disseste que horas são…

A: e o senhor não tem relógio?

B: tenho, mas sabem melhor as do relógio dos outros…são mais baratas…

A: ah!

B: além disso, o meu não é despertador.

A: não se preocupe que aqui ninguém se esquece de si.

B: é para rir?

A: não.

B: que pena! [cínico] Tão divertido que és! Ouvir-te é como lavar o surro da alma! És uma barrela de gajo.

[pausa; ouve-se o som de marteladas]

B: ouves isto?

A: o quê?

B: o quê, ó meu oficialmente estúpido? Não vês que estão a martelar?

A: ver não vejo, quando muito ouço.

B: deixa-te de te armar em engraçado puto, que isto agora não tem mesmo piada! Parece que querem escavacar isto tudo, com um escafandro!

A: melhor ainda, menos sobra! [o som aumenta]

B: sobra? Quem não sobra somos nós, que ainda levamos com o tecto em cima e eu não nasci para soterrado…

[o som pára; A e B entreolham-se]

B: pararam? [pausa, o som recomeça]

B: parece que… [o som pára]

A: eia, eia, ó senhor guarda! Eia!

[voz masculina]: mas que algazarra é esta?

B: algazarra? Algazarra é esta martelada que me rebenta com os miolos! [pausa]

A: ó senhor guarda! [o som recomeça]

[voz]: diga lá [o som aumenta]

A: o quê?

B: alguém falou? Mas tu agora falas com polícias? Mas onde é que já se viu?

A: fui eu quem falou!

B: não! Lá de fora! Uma voz…

A: xô! Deixe ouvir! Ó senhor guarda! Estão para aí a partir o quê?

[voz]: pedreiros! [pára o som]

B: pedreiros? [incrédulo] mas isto vai para obras? Mas que malta da ferrugem é essa com quem estás a falar?

[voz]: mas quais obras nem meias obras? Então não sabe que estamos de mudança? Que o tribunal vai sair daqui? [o som recomeça]

A: sair daqui? Mas sair daqui para quê?

B: daqui? Mas daqui para onde? [o som pára]

[voz]: olhem que isso adianta-vos muito.

A: mas então e o nosso julgamento?

B: isto parece uma comédia [o som são agora as batidas de Molière]. O Pátio das Comédias.

[a cena escurece]



[B está virado para o público; A continua colado às grades]

B [para o público]: ir embora daqui? Mas como ir embora daqui? [o som agora é o do zumbir de uma broca]

B: não! Não é possível! Tantas semanas, tantos meses à espera deste momento! Isto não pode ir embora daqui. Não pode pura e simplesmente.

A [em conciliábulo com o guarda]: ainda hoje? Mas ainda hoje como?

B [sempre para o público]: tanta noite mal dormida a pensar no dia de hoje. E logo hoje não há hoje? Lírios no campo, pássaros no céu! Abram-se as portas do Além!

A: cale-se, deixe ouvir!

B: mas cale-se o quê? Mas então um homem prepara-se e depois é o vai-te embora?

A [sempre em conciliábulo]: ah! Para hotel! [pausa; vira-se para B] Isto vai ser para hotel…

B [atónito]: para hotel? Está a gozar comigo! [virando-se para a assistência]: tantos dias, tantas noites e agora não é mais aqui!

[B corre a juntar-se a A; ambos ficam às grades]

A e B [ouvindo do guarda e comentando com expressões de interjeição, monossilábicas]: sim, sim, não? Xi!

A e B [correm para a boca de cena]: um hotel!

A: de charme! Um hotel de charme!

B: Jesus, é pior do que eu pensava!

[a cena escurece]





III ACTO

A decoração é a de uma saleta de hotel, dois sofás; o fundo é agora de cor de salmão, com quadros pendurados. Um candeeiro de pé alto. A está sentado num dos sofás, fumando um charuto, B entra, reconhecem-se e entabulam conversa. Ambos vestidos com elegância. O tom é afectado, snob.



B [levantando-se do sofá, ao reconhecer A]: ó meu caro amigo!

[abraçam-se efusivamente]

A: mas que agradável surpresa!

B: e que magnífica coincidência.

A: catorze anos depois!

B [baixando o tom de voz, com ar de embaraço] sim, catorze anos, duas vezes sete, magnífica soma! Pensei que não me reconhecesse…

A: como não o reconheceria? Apesar de estar um pouco mais novo…de aspecto, diga-se! Então o que faz?

B: o que faço? Nada!

A: nada? Porquê?

B: evito fazer! Tenho quem faça por mim! Dediquei-me a arrumar umas contas com o passado.

A: folgo muito em vê-lo!

B: eu fiquei muito contente comigo ao tê-lo visto!

A: não contava voltar a vê-lo…

B: eu esperei este tempo para voltar a encontrá-lo…

[pausa; entreolham-se; ambiente de embaraço]

B: Então e…da outra vez?

A: qual outra vez?

B: ora qual outra vez? Há catorze anos, neste mesmo lugar!

A [dirigindo-se para a assistência, pausado, enfático]: Neste mesmo lugar…

[pausa]

A: fomos adiados não fomos?

[pausa]

A: sim, fomos adiados. E depois…bom [cortante], depois não interessa!

B: é verdade, não interessa. Não interessa mesmo.

A: bom hotel este…

B: muito bom!

A: charmoso…

B: muito! Costuma hospedar-se aqui?

A: muitas vezes. Tem…bons ares…é praticamente a minha casa…

B: da zona ribeirinha!

A: isso! E o senhor costuma vir para aqui?

B: é a primeira vez.

A: a primeira vez?

B: sim, a primeira vez. A bem dizer, hospedei-me aqui por sua causa.

A [surpreso]: por minha causa?

B: sim. Precisamente por sua causa. Vi-o entrar para aqui e decidi-me.

A: Ah! Mas…

B: estamos no mesmo piso…

A: junto ao Bar Plenário?

B: ora aí está. O meu quarto é ao cimo da escada…

A: perto…

B: [inquietante] muito perto! Quis estar muito perto de si…

A: mas…porquê?

B: porquê?

[pausa]

B: queria encontrá-lo. Fazia absoluta questão em encontrá-lo.

A: encontrar-me?

B: sim, encontrá-lo. Procurei-o todos estes anos. Ninguém sabia de si. Foi absolvido, vim a saber. A partir daí sumiu na escuridão, excepto na minha cabeça. A sua imagem esteve tanto tempo nos meus olhos que se fundiu neles.

A: estive fora e dentro estes anos…

B: eu também. Fora de circulação. Tanto tempo… um tempo que não é o do relógio, um tempo vivido, um tempo que se vinca, sabe! Um tempo que se vinca em rasgos no coração…, um risquinho, dois risquinhos, à espera da porta aberta, do alça-te e ala à noite da vingança.

A: mas o que pretende o senhor de mim?

B: [muda para um tom intimista mas ameaçador]: vê lá, faz um esforço. Pensa um bocadinho. Dá-me este tempo de gozo. Estou guloso de ti…

A: desculpe-me, mas não estou a entender.

B: não estás? Ou não queres estar?

A: porque haveria de não querer entender?

B: porque pode não te convir entender!

A: eu não tenho conveniências dessas…

B: todos nós temos as nossas. A mim, por exemplo, foi-me muito conveniente vir atrás de ti. Seguir cada um dos teus passos. Não calculas o gozo. Olhar para ti a uma conveniente mas curta distância. Mirar-te as roupas, a mala. Mas que belas malas. Sou um vicioso. Ver é a minha perversão.

A: é dinheiro que quer?

B: dinheiro! Porquê? Tens alguma coisa a comprar, puto?

A: … eu já não sou puto! E não sei o que o senhor quer…

B: e convém-te saberes, não é? É isso…são as conveniências de quem agora já não é o puto que eu conheci. O pequeno mundo das pequenas conveniências.

A: despache-se. Diga ao que vem. Não tenho tempo a perder consigo.

B: tempo? Todo o tempo, puto. Está em causa a tua vida toda. Todos os anos que já viveste. Todos os anos que ainda te restam para viver. Eu sou um comboio fantasma que veio pela noite fora ao encalço dos teus pesadelos…

A: …mas o que quer dizer com isso?

B: mataste, não mataste? Diz lá...mataste, sim!

[pausa]

B: mataste! Mataste-a e agora tinha-la morto já na tua consciência. Catorze anos depois já nem vestígio havia. Estavas tranquilo com a vida. Rico, feliz, respeitável. Sossegado. Amnistiado na tua cabeça!

A [soergue-se e virado para a assistência]: sossegado…

B: dono, enfim, deste hotel! Mas que magro, afinal, era o teu capital de felicidade!

A: como sabe isso do hotel?

B: dono, enfim, deste hotel…

[pausa]

B: até que eu te vi chegar. Eu já estava ali. Há catorze anos à espera. Sabes o que é uma espera nervosa que se torna num aguardar paciente? O sentinela da justiça, contando os passos, sem rendição…

A: à espera de mim?

B: sim, de ti mesmo, o rapaz que costumava parar por Campolide…o rapazinho tímido, caricatura de gente, um garnisé na prisão do galinheiro!

[pausa; A olha profundamente para B]

A: mas…, mas…que quer o senhor?

B: eu? Tu é que agora vais querer alguma coisa de mim!

A [virando-se para B]: perdoe-me, senhor, por favor…

B: perdoo-te?

A: sim, perdoe-me! Por favor! Não diga a ninguém! Não fale! Que fique entre nós esse segredo! Nem lhe pergunto o que sabe ou como sabe! Nada! Nem uma palavra. O silêncio…

B: e como achas que um acusador pode perdoar sem condenar?

A [nervoso]: o senhor já me condenou!

B: reconheci-te uns dias depois de termos estado naquela cela, neste mesmo lugar. Foste tu quem a viciou, quem a conspurcou, quem ma matou. Não tinha outra filha.

A: por favor! Não! O senhor não compreende…

B: não tinha outra filha nem outro amor. Mataste-ma. E soube-te bem matá-la! Rendeu-te bem matá-la!

A: matei-a?

B: mataste-a, sim. E agora, é a hora em que vais ser julgado! Adeus à tua riqueza de coisas inúteis…chegou a tua boa hora…a idade do ferro, em que as penas e a miséria do teu passado serão o punhal que ter roubará ao presente.

A: julgado? Mas julgado como? Não me diga que me vai denunciar ao tribunal?

B: não, não te vou denunciar ao tribunal! Há segredos que não se partilham! Uma palavra dita, uma alma morta! Este é o meu mundo, o que me resta de todos os outros mundos. Perdi a convicção na possibilidade de me convencer!

A: O senhor está louco! Aliás, provas, onde é que as teria?

B: estás tão errado, meu rapaz. O tribunal que te vai julgar tem já as provas todas. Não vais ter a sorte da tua outra vez. Lembras-te? Cada um que subia do alçapão à superfície julgava que era a ele que a sorte ia favorecer. Como na lotaria! Como na casa de penhores! A ele e mais ninguém. Um dia de sorte. Tu tiveste já o teu dia de sorte. Este é outro tribunal! Eu sou a vida que veio procurar-te onde tu deixaste a vida!

A: mas qual tribunal?

B: ah! Como te falta a palavra que te permitiria o segredo! Este tribunal! Este mesmo tribunal! Aqui, nesta sala, neste local! Uma vez tribunal, tribunal sempre. Fora de todo o outro mundo, oficial, real, verdadeiro! O Tribunal da Última Razão.

A: como?

B: sim, pobre aprendiz da malignidade, neste tribunal serei eu o teu juiz e o teu defensor! Os teus remorsos serão os teus acusadores. Não tens mais ninguém. Há sempre um dia em que se não tem mais ninguém no tribunal da consciência. Aproximam-se as trevas. Prepara-te para esta breve viagem. Não há nada mais para além daqui.

FIM