12 agosto 2010

A personagem

Escrevia-os em improvisados papelinhos e entregava-os a quem fosse por causa da inesperada paixão. E livros seus que se imprimiram na tipografia económica, revistos ali mesmo, na velha mesa ao lado da caixa dos tipos de caixa alta e caixa baixa, a corpo oito e a corpo doze «não escreva a Times porque isso poupa papel mas cansa os olhos do leitor maçado» e desses livros sabe-se pouco porque nem eram muitos, «baixe a tiragem e poupe nas sobras».
E distribuía-os, mão a mão, percursos orgulhosos a pé, na ânsia de os conseguir vender e recolhia-os depois, envergonhadamente invendáveis.
Por atrevimento de carácter primeiro, por carência de afecto depois, fazia-os chegar aos amigos, o olhar ansioso de cão por festa, julgando que ao menos assim apreciassem quanto escrevia, discurso indirecto de gostarem da sua pessoa. Via-se na compulsividade do gesto a expectativa de um aceno.
Um dia surgiu-lhe assassina a dúvida quanto a saber se gostar seria bastante. Quem o leu tomou-o pela seriedade filosófica da questão que era, afinal, um apelo de alma vindo do mais longínquo da sua pessoa.
Iniciou-se então a obra que passou a ser a de uma outra personagem. Esgotado de esperar, deixara de ser o escrito tentando ser o escritor.