25 setembro 2008

A dispersa memória

Cruzadas as mãos, sobre o colo apoiadas, os olhos firmados no indeterminado horizonte, o pensamento ausente, era ela, a improbabilidade de si na exactidão do momento.
Tinhamo-nos visto anos antes, muitos anos idos, resquícios tudo isso agora de uma dispersa memória, lembrança esburacada feita de ausências, de desejos por realizar, fantasias de uma outra forma de ter vivido. Regressei, ao vê-la, ao tempo dos quartos alugados, os carinhos de ocasião.
Inseguro quanto a ter-me reconhecido, sentei-me, duas filas atrás, a mole humana como paliçada protectora da minha vergonha, esse modo decente de serem os remorsos um simples rubor de timidez. No fundo eu fugia ao que tinha sido.
Notei-lhe a saia poída, o casaco sobejando ao corpo emagrecido, os lábios mirrados pela desdentação. Ao vestígio de um brinco rendilhado sucedia agora, molemente pendente, um lóbulo de orelha disforme, sozinha.
Nesse tempo eu escrevia horas infinitas sob uma luz hesitante, uma nesga de janela sobre uma parede vazia como firmamento, as estrelas quando sonhadas. Regressava a casa protegido pelo seu sono pesado, a arritmia de um ressonar embalador, uma tábua junto ao aparador a chiar, lágrimas pela minúscula casinha de jantar.
Uma vez por mês fazíamos contas da minha hospedagem. Olhava-me então com a censura do olhar de quem precisa de ceder o corpo por necessidade, ao franquear a porta de sua casa a um qualquer outro que podia nem ser eu.
Um dia de descuido parti-lhe desengonçada jarra que a ausência de flores condenava ao ridículo. Ainda hoje recordo o estridente dos cacos, como uma gargalhada pelo chão. «Desculpe-me», disse-lhe tartamudeando o meu embaraço. «Eu pago». Devolveu-me o infinito de uns olhos já sem cor como desprezo.
Vi-a hoje. Vivia agora à mercê do acaso. Ao último hóspede sucedeu fecharem-lhe a casa. Cruzámo-nos na saída. Indiferente a todos, estendeu-me a mão como se a um qualquer outro, não num cumprimento, mas a pedir. Paguei-lhe, generosamente, a jarra, as gargalhadas, o corpo e a necessidade, a alma e os remorsos, o pensamento ausente.