26 abril 2010

A ingovernável vontade

Tinha-lhe regressado a ingovernável vontade de rir. Rir do mundo na sua generalidade, de ser redonda a Terra e nos pólos achatada e das estrelas que, sendo imóveis, pareciam planetas. Rir dos outros e cada um dos que eram a materialização do outro, como a senhora esquálida de vestidinho malva e mangas tufadas os bracinhos de polvo escondidos, a mão ossuda, rapace, anquilosada, no banco dos palermas do autocarro apinhado. Rir, rir sempre, rir sem dentes, sem boca e sem língua, rir sorrindo, rir num esgar.

Tinha reaprendido a arte do riso, a técnica da hilaridade, o modo de escancarar gargalhada. Naquela manhã saíra mais cedo para a rua, ultrapassando a miséria em que antes tropeçara, a do lixo por recolher, evitando, numa gincana sabida, os mendigos e os mal enjorcados, a pedirem remendo ou ferro de engomar.

Diante de si a cidade, a mesma cidade em que nascera, para a qual se dirigia todas as manhãs, regularmente, a cidade sorumbática e indisposta, a dos ensonados, ruminantes de noites mal dormidas ou pior passadas, a exalar o mofo de alcovas enfadonhas e o odor sintético de duches despertadores.

Conseguira encontrar na sua cara uns outros olhos, no seu rosto um esgar aberto sem rugas e, sobretudo, uma nova forma de estar.

Foi por isso, nesse outro mundo, que o mundo lhe surgiu na forma de um aflitivo chiar, um estrondo sentido como se em outro instantaneamente a rachar-lhe a cabeça. Horas depois, removidos os salvados, levado o corpo, enxaguado o sangue no pavimento, a cidade ria, rendida à ingovernável de rir. Louco de tão senil, saira à rua nu da cintura para baixo e assim se fora as pernas esfaceladas.