01 maio 2010

O marceneiro místico

Sentado num canto do armazém, um homem olha, uma vez mais, o espaço vazio à sua frente. O que fora uma serração, fábrica de móveis para exportação, era agora um hangar, lugar de arrumação de madeiras emparelhadas e nada mais.
A falência tinha encerrado a produção, os credores mais astutos tinham conseguido, pela calada da noite, levantar as máquinas, pagando-se assim, conluiados com os administradores que, entretanto, andavam por parte incerta.
Restava agora o material que, anos a fio, dera trabalho a tanto operário, prodígios em carpintaria que a arte de tornear havia feito ornamento de pobre e vaidade de rico, prenda para primeiro casamento ou remodelação de fastidiosa decoração de uma vida a precisar de novidade.
Agora, tudo se resumia à sua pessoa e às pilhas de barrotes de que ficara, nomeado pelo tribunal, fiel depositário.
Não fora fácil adaptar-se ao seu novo estatuto, à condição legal em que fora investido, sem pompa nem circunstância, por um oficial de diligências apressado no «assine aqui».
Filho e neto de operário, educado na honradez do sacrifício, instruído na dureza do combate pelo pão e pela paz, faltara-lhe a coragem de anunciar-se em casa como despedido, como se aquela ociosidade forçada fosse um anátema que o desqualificasse como homem e o insultasse como cidadão, como se abandonasse agora, com o seu novo estatuto, as fileiras do proletariado, razão do seu orgulho e da existência do seu ser.
Ainda por cima, aquela nomeação vinda do tribunal tinha, nos recônditos clandestinos da sua memória, um sabor estranho a colaboracionismo, que o tornava um amarelo traidor à causa colectiva, à luta dos trabalhadores seus camaradas, cerrados ainda em fileiras, nos piquetes de greve, que nunca furara uma sequer e pelos quais sofrera os curros do Aljube, sua condecoração, lenço vermelho ao pescoço, apertando-lho como se a lembrar o juramento fraterno do juntos venceremos.
Por causa disso, dessa incapacidade de confessar a sua miséria de desempregado, saía todos os dias de casa, a mala lancheira na mão, o eléctrico de Alcântara apanhado à hora certa, vindo a pé, calçada abaixo até à primeira paragem, pelas sete da manhã. Sentado na mesa da sua exígua cozinha, cabisbaixo como se habituara a ser, arcando em si a infelicidade explorada de toda a sua classe, sorvia as sopas de café como mata-bicho, o rádio baixinho para não acordar os vizinhos, as primeiras notícias da manhã a revoltá-lo o suficiente para o resto do dia.
Fora assim, este ritual matutino, toda a sua vida activa e era agora o que preenchia, com o sempre igual da rotina, o vazio da ociosidade.
A diferença só acontecia quando, chegado ao seu posto de trabalho, já o fato-macaco envergado, se cruzava com a sua solidão. Logo ao franquear do portão, já não estava, como anos a fio estivera, o guarda do turno da noite, olhos encovados à espera de ser rendido, um hálito notável a bagaço, a sua companhia nocturna, o Alves, que deambulava agora, vadio entre os bancos de Belém e a varanda da sua casa, prisioneiro de olhar distante, um cigarro apagado nos lábios, alças de camisola interior todo o ano, o peito encostado às costas da cadeira, sentado ao revés, as mãos sob o queixo, a imobilidade perpétua dos que já cá não estão se não na contemplação angustiosa do que ainda resta.
No armazém do nada, resto da fábrica de coisa nenhuma, passaria meses seguidos, sem outra missão que não fosse a de guardar, sem nada já que se guardasse.
Mas foi num dia,um dia que parecia ser, como tantos outros seus antecedentes, igual e como eles indiferente, que tudo aconteceu: uma ideia, vaga e incómoda, visitou-o, como se uma aparição etérea o tivesse possuído: olhava para o tecto do enorme espaço que era o hangar, já escurecera, o dia invernoso, daqueles em que anoitece mais cedo e eis que uma luz, vinda do céu, o atingiu, talvez o refulgir de uma estrela inesperada.
Tinha-se deixado ficar para além da hora, ébrio de pensamentos e de estranhos presságios.
Em redor, o trânsito começara já a abrandar, e com isso a noite ganhara presença, inundando-lhe o interior e restituindo-lhe uma estranha paz que nunca sentira.
Um desejo de ficar tomou então conta de si. Não tendo ninguém em casa, liberto de ter de dar uma explicação para a sua demora, o seu lugar era ali: encostado a uma parede, os pés estirados, adormeceu profundamente, cansado como nos velhos tempos de corpo sovado pela labuta diária, na hipnose de olhar o céu.
Sonhou, ele que nunca mais sonhara desde miúdo, para quem a cama era um lugar de alienação e de perda de tempo, um intervalo necessário quando esteve doente e raramente estava doente, o dormir um luxo de que os trabalhadores, condenados ao madrugar, estavam roubados pelos exploradores do seu trabalho.
Conduzido pela fantasia, sem que a sua vontade domesticada pudesse interferir, levantou-se, como um real sonâmbulo e, pela primeira vez, aquele hangar vazio, aquelas madeiras empilhadas ganharam um significado e um sentido e a sua pessoa uma dimensão outra, que nunca julgara possível e para a qual uma irresistível força o empurrava, como se levitando aquém dos limites do real.
Começou nesse dia a construção do que viria a ser uma das mais magníficas catedrais que o espírito humano havia concebido, lugar de culto de uma religião sem deuses, a sagração do espírito e a sua hossana ao mundo.
Dia após dia, surgiram, edificadas, as paredes altaneiras, o edifício escorado sob o travejamento que lhe sustentava o equilíbrio.
Primeiro a nave central, traçada a fio no chão, longilínea a todo o comprimento do espaço disponível, medida a passo até ao cruzeiro onde lhe surgia, atravessando-a, o transepto, essa forma de o edifício ser ele próprio o símbolo da persignação.
Esforço de gigante, a sua idade a pesar-lhe como as madeiras às costas, alçava-se a pulso nos andaimes vendo-a de cima, na vertigem da sua caminhada ascendente, a arquitrave que lhe daria o remate das colunas do oriente.
Alquebrado, colado, como se cozido às paredes do hangar de onde tudo surgia e se erguia, pois mal lhe restava caminho por onde andar, movimentando-se como réptil sob a imensidão da sua obra, acocorando-se e ajoelhando-se, rojando-se mesmo, humilde, aviltado o ser, havia um homem que definhava para que a obra nascesse.
Foi na noite escusa do construir secreto da abóbada, em que o trabalho não pára por não poder parar, os arcobotantes a segurar-lhe a consistência do construído, que começou a retirar, telha a telha, a cobertura do hangar.
Noite de vento, prenúncio uivante da tragédia, entre os elementos furiosos que quase o arrancavam dali, vime seco de um mundo vegetal já morto, prosseguiu, metódico, persistente, a raiva mordendo-lhe a alma, o seu trabalho, abrindo espaço para o surgimento da obra.
Pela madrugada surgia, majestoso, o pináculo final, uma flecha erguida aos céus, o remate final do seu trabalho.
Abaixo, vista daquele ponto de remate, a sua galeria de imagens, talhadas durante os anos do seu desemprego, recortadas no tosco em madeira doce a golpes de formão e aplainadas com a minúcia manual da sua grosa, amiga e companheira que tantas vezes, escapando-se, distraída, lhe mordera as mãos.
Quando foi encontrado morto, no alto da sua tresloucada edificação, a cidade embaraçada tinha, na zona oriental a Xabregas, como se a encomendá-lo, num defunctis pagão, todo o exército silencioso dos seus santos, os heróis do trabalho, mártires da Revolução, os apóstolos do ideal redentor que professara.