08 janeiro 2011

O incómodo

Havia dias em que se sentava, aninhada, deixando desfilar pela sua mente cenas sobre o que tinha sido a sua vida. Cenas confusas, porque nada era nítido nem claro, imagens desfocadas, amalgamadas na sua sequência, atropelando-se, imparáveis ao sucederem-se, em aceleração constante, mais depressa, cada vez mais depressa. Cenas confusas, porque as que eram verdade do seu passado breve se misturavam, indistintas, com as que eram a fantasia do que gostaria que tivesse sucedido. Sentada na sua cama, escondida no seu quarto, sem cidade nem gente, sem si.
Foi assim que lhe surgiu a bicicleta, que em garota tanto desejara, e na qual voava agora, veloz, velocipedicamente feliz de tão contente, infantil e ria, o mundo de todos os outros sempre para trás, pedalando de deixando-se ir, o duro selim sentido ali e as pernas a cansarem-se, abandonadas, mesmo quando a corrente um dia se soltara, escorregadia de oleada, para se ensarilhara no pedal, conspurcando-lhe as mãos de modo tão real que ainda hoje o sentia, persistente e viscoso, como uma nódoa que lhe manchasse a existência.
Dias houve em que a possibilidade da bicicleta se tornara na impossibilidade de voltar a vivê-la como a sentira nesse tempo passado de promessas de vida em que o mundo lhe parecia o território de todas as eventualidades. E o corpo ausente.
Sofrendo essa indeterminação do presente e essa indiferenciação do passado, todo o tempo lhe parecia tempo futuro, todo o espaço pátria de devaneio.
Imaginou-se assim, a supor a vida como uma contínua antecipação, a visionar-se como uma intérprete que representasse a personagem de que era a figurante, tímida, hesitante, em constante espanto, espanto contraído por não haver surpresa diante do adivinhável que afinal se adivinha, mundo em que a biografia é como uma necrologia a precipitar-se no jornal que só o próprio lê, condoído de si.
Assim eram alguns dias recônditos de hesitante sol, dias de dormência e de sorriso, dias de visitação de doçura e de afago despontante, dias de atrevimento esconso.
Mas hoje chovia, chuva pertinaz, convicta, feita do acto de chover muito e muitas vezes e quase sem excepção, o céu povoado de ofensivas nuvens, aziagas nos seus presságios de relâmpagos, em que se liam azares e sortilégios, a ribombar descompassado o coração, e bátegas de malignidade, cruas como pontapés.
Foi aí que o viu, não pelo aproximar que a previniria, mas no próprio instante pavoroso em que o sentiu, ele e o seu peito, ele e o seu arfar, o hálito e os dentes, o pulsar vital e o abocanhá-la, a mão aprisionada, o suar e o arrepiar-se, fria, já não era ela ou outro mas uma alteridade estranha, estrangeira, que a dominava, subjugando-a, fazendo-a sucumbir, como se os intestinos se lhe revirassem e tudo quanto são entranhas e vísceras e o tumulto interior que são as catacumbas do corpo. Tremendo sonho, retesava-se num esgar de dores e de rejeição.
Um fio de água gelada escorria-lhe do cabelo, afundando-se pelo rosto, sucessivamente mais fria, o peito a eriçar-se de tão álgido, cortante, intimamente jorrado, liquefazendo-se a ensopar-se, escorrendo incomodidade e vergonha.
Vindo de si, como um choro contido num murmúrio, um clamor aflito, a chamar por socorro, uma revolta contra o mundo todo e contra aquilo em que se tornara, um fio imperceptível de vida conhecia, enfim, a sua existência, ungindo-a em sagração primaveril.
Sangrava pela primeira vez a inundície lodosa que a fazia mulher, nascia consigo a repelência que se tornaria o modo como não se reconheceria jamais em qualquer galanteio, o cinismo ácido com que receberia todos os adjectivos amáveis da língua simpática dos habitantes das terras da cortesia, os agraciadores indiferentes, os cortejadores amáveis. Repugnava-se de si mesma e do medo lunar do improvável momento.
Naquele dia impedir-se-ia de voar na sua bicicleta para não desobedecer às conveniências.
A Natureza sujara-a durante o sono, como a um palhaço a pintura, o rosto ridicularizado, menina a julgar-se feia, a boca sanguinolenta de tão vermelha, inchada de tão grotesca, o corpo o arrendondar-se de desejos e suas dores.